sexta-feira, agosto 03, 2007

- o carteiro -


Vincent Van Gogh
Fifteen Sunflowers in a Vase
1888
National Gallery, London

“Ó pá, és uma galhofeira.” E assim, sem querer saber nada, Rosa sabia tudo, porque as pessoas revelavam-se nos seus actos e nos seu ditos e faziam-no com gosto. É que sentiam naquela mulher franzina alguma confiança – totalmente merecida, diga-se -, e aquilo saía-lhes naturalmente como se nada que pudessem ter a esconder fizesse algum sentido naquelas circunstâncias, aproveitando ao mesmo tempo para mostrarem um bocadinho de vida. Em casa era impossível, não por serem pobres e terem histórias de alcoolismo e maus tratos. A Té, por exemplo, tinha casado há pouco mais de dois anos, entre um coro obsceno e alguma vergonha lá revelava que a coisa ía de vento em poupa. E o marido era fiscal das obras da Câmara Municipal, por isso não vamos ficar aqui a pensar que era uma qualquer, que não era. A Mary estava casada há mais tempo, tinha dois filhos e às vezes tinha problemas: ou porque a família de um deles se tinha metido, ou porque o dinheiro se calhar não dava para o mais velho ir para a faculdade naquele ano, ou porque ele tinha tantos ciúmes dela que a procurava pelo bairro onde moravam de melena desalinhada sem se lembrar que o corpo dela estava encostado e distraído ao muro do quintal a chupar amoras da árvore da vizinha. Mas apesar desta aparência de vida com que num instante foram ocupadas as linhas atrás, faltava sempre alguém que por desconhecimento as pudesse valorizar. O nubente de Té e o marido de Mary conheciam-lhes todos os predicados, mas não o diziam todos os dias e a verdade é que a rotina era pouco propícia à demonstração de outros predicados que as esposas tinham, que as mães possuíam e que filhos e marido num caso, e apenas marido de brincar, no outro pudessem exaltar. Assim, para além de uma ou outra noite em que o sexo era realmente bom, em que a conversa tinha acabado com a mão dada, em que as discussões tinham ficado sanadas com um sincero beijo de paz, só as heroínas da novela podiam testemunhar o valor da Mary, da Té e da Rosa.

Mas para que não reste uma sombra sobre a distinção que fazemos entre o tipo de pessoa que eram para Rosa, Té e Mary, e o tipo de pessoa que mostrava ser Celeste, sigamos então para o segundo exemplo. Quando o autocarro parava na paragem em que entrava Celeste, era impossível abordar a rapariga do ponto de vista dos brincos, uma vez que a atenção do recheio humano do autocarro – Rosa incluída – se concentrava no recheio transbordante do decote de Celeste. Não havia conversa a partir dos brincos e relativamente a decotes, é conhecido um código de conduta feminino que não permite que em locais públicos uma mulher faça observações sobre a linha que separa os seios de outra, de forma a ser ouvida por elementos estranhos ao grupo. Cada uma, quando saía e ía tratar das escadas a pano, de levar os meninos da patroa à escola, de voltar para o autocarro, formulava na sua mente a pergunta sobre o decote que, por respeito ao código não fazia em voz alta e que variava entre: “Ó Celeste, não achas que estás um bocadinho descapotável”, “Ena mulher, também andas a amamentar os filhos da tua patroa. Ou será que andas a amamentar o marido da tua patroa”, “Ó Celeste, tu és puta ou quê?” E não nos choquemos, que a vida fora dos códigos é assim e mesmo dentro deles, a respeitabilidade é limitada pela nossa imaginação cuja tentativa de inibição é tarefa inglória.
(in, O Simétrico)