- o carteiro -
O diabo está nos pormenores. E nos cães.
Se antes me detinha perante uma composição que suspeitava já ter visto em outra obra, hoje o que me prende a atenção são... os cães. Notei, há algum tempo, que os quadros executados entre o século XV e o século XVIII têm, consoante os autores e as temáticas: cenas da mitologia, banquetes, retratos de nobres (mais elas do que eles), e outros em que a presença dos animais não se justifica, mas eles estão lá. Apresento para já alguns exemplos:
Neste caso, como temos a deusa da caça retratada é natural que a mesma esteja acompanhada dos seus fiéis amigos que a protegem e que vão buscar o fruto da caça.
François Boucher
Diana no banho
1742
Museu do Louvre, Paris
No entanto, neste caso, já não se percebe porque é que Ticiano fez Danáe acompanhar-se de um cão, no momento da fecundação. Danáe estava ser fecundada por Zeus que assumiu a forma de uma chuva de ouro. Um cão enrolado, e minúsculo está à cabeceira da princesa grega. Avanço com a hipótese de, como se trata de uma princesa, Ticiano ter pintado Danáe acompanhada por um animal de estimação tal como pintaria uma princesa vestida acompanhada do seu cãozinho.
Ticiano
Danáe com a Criada
1553-1554
Museu do Prado, Madrid
Com Circe volta a fazer sentido a presença dos cães: os amantes humanos de Circe assumiam a forma de animais.
Dosso Dossi
Circe e os seus amantes numa paisagem
1525
National Gallery of Art Washington
E Cleópatra, porquê tem a rainha um cão perto da mesa de banquete. É difícil investigar esta questão. Facto é que em retratos de banquetes esta é uma imagem recorrente. Não sei se para colocar a tónica no lado mais caseiro e familiar do banquete (à excepção do banquete de casamento, nem todas as classes podiam ter e assistir a um banquete e como é óbvio, havia diferenças segundo a classe social em questão), se para sublinhar o sentido ainda mais luxuriante e exótico dos banquetes reais: um cão ao fundo de uma mesa pode sempre ser presenteado com os restos de comida que o seu dono não quer. Talvez seja uma noção vinda da Antiguidade Clássica onde pelo menos nos banquetes romanos o desperdício de comida e mesmo a avidez eram comuns. Já com os gregos era diferente, embora um cão se destaque entre todos os ca~es gregos: o de Ulisses que esperou pelo seu dono e foi o primeiro a reconhecê-lo. (Já aqui referi num post muito antigo a relação entre os cães e os homens na literatura. Também em Frei Luís de Sousa é o cão que primeiro reconhece o romeiro, antes mesmo de qualquer humano, na Bíblia é o cão que que primeiro vai ter com o cadáver de Abel e no Fausto, na lenda que deu origem ao livro e ao filme e às peças e às óperas, o médico fazia-se acompanhar de um cão negro que segundo se afirmava tinha o diabo aprisionado nele. O Orlando de Virgina Woolf fazia-se acompanhar de um cão, seu único parceiro.)
Giovanni Battista Tiepolo
O Banquete de Cleópatra
1743-1744
National gallery of Victoria, Melbourne
Nesta outra pintura de Ticiano um cão ladra para um pequeno fauno que arrasta a cabeça de um animal. Talvez para conferir mais tensão ao tema, mas o cão não se justifica no mesmo. Sem este elemento a composição até poderia perder força no corte abrupto das linhas de força, mas a colocação de um cão é também ela um exagero.
4 Comments:
outro "tema"... (outra segunda-feira...)
recordo-me de ver e de ouvir qualquer coisa sobre a pintura de facas, para "acentuação" da perspectiva e tridimensionalidade do "campo pictórico" (e como vaidosa e economicamente apreciada demonstração de virtuosismo do artista...), na pintura das "cenas" domésticas das naturezas mortas...
quem sabe a beluga...
com tempo, quem sabe?...
o que não deixa de ser curioso é que no antigo Egipto os gatos é que eram sagrados. porquê um cão?
por dar um sentido familiar à pintura, por o cão ser "o melhor amigo do homem", por uma questão de distinção das classes sociais (os mais ricos eram retratados com cães de raça), os mais pobres com "rafeiros". mas não tenho a certeza de nada. Estes "carteiros" ainda dão uma tese de doutoramento (pode é não ser muito boa)
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