terça-feira, janeiro 17, 2006

O CARTEIRO

"Em Busca de qualquer coisa perdida" ou "Picar o ponto cultural" ou como "Eu hoje não estou muito bem disposta por isso desamparem-me a loja"
Quando iniciei a leitura de Proust, dei-me conta que a obra de arte total que este clássico é – não confundir com “obra de arte total” segundo Wagner – era para todos. Ou seja; toda a gente enchia a boca para falar de Em Busca do Tempo Perdido, mas eram poucos aqueles que de facto a tinham lido. Professores, alunos a fazer tese sobre Proust, qualquer senhor que me via com o volume branco na mão e ar perdido, se achava no direito de dizer “Proust? Em Busca do Tempo Perdido? Conheço." (Ar cúmplice na face como existisse uma sociedade secreta dos que leram Proust. E o homem até nem tem "muitas obras" , ele que escreveu apenas mais dois manuscritos: Contre Saint-Beuve e Jean Santeuil – que deixou por terminar – e ainda, agora me lembro, Les plaisirs et les jours.).
Toda a gente opina, toda a gente sabe o que é, sobre o que é. Recordo aqui que mal saiu a Mancha Humana de Phillip Roth, a Beluga comprou-o e começou a lê-lo logo nos primeiros dias. Numa ida ao alergologista (sim, vocês não sabem o que é dar 8 espirros ao acordar e 8 ao deitar, sendo que ao deitar é muito pior porque já vou cansada. Até tenho abdominais de tanto espirrar! E uma colecção de lenços de papel em todos os locais por onde passo. O pior é mesmo no teatro e no cinema, quando tenho de conter 8 espirros seguidos para não perturbar ninguém e para que não me mandem embora por suspeitas da gripe das aves.). Então, o senhor doutor, ao ver-me à espera da consulta com ar tão compenetrado e dedicado à leitura diz olhando para a capa:”A mancha Humana? Muito bom, está a gostar?” “Estou. Leu?” “Sim, há muito tempo”. [Mas como, se o livro saiu agora?]
Outra situação: Beluga a ler Crime e Castigo de Dostoievsky na versão inglesa. Um senhor simpático e velhinho senta-se ao meu lado e diz: “Crime e Punimento?” (O título em inglês é Crime and Punishment”.) Respondo que sim. “Não é muito pesado? Gosta disso?” “Até ver, não tenho sentido dores nas costas, parece-me que não é assim tão pesado. São só folhas de papel”, respondi com o humor a sair para o sarcástico.
É o típico "picar o ponto cultural": tem um título sugestivo? Foi prémio de qualquer coisa? Vendeu muito? Embora lá. No fim, é sempre bom, mesmo quando não nos sabe a nada. E temos vergonha de dizer que gostamos de coisas sem nome sonante.
Para os que não leram Proust, um conselho: não leiam, principalmente se forem como eu e não gostarem de leituras paralelas. Demora muito tempo e se calhar deve ficar para um momento da vida em que esta já tem uma carga de sabedoria que torna a obra mais compreensível, em que se pode perceber o efeito do Tempo, sem dizer de cor: "O Tempo cura tudo". É difícil compreender certas relações entre as personagens, o modo como fazem o que fazem e o porquê, se ainda não se viveu o necessário. Mas para quem mesmo assim quer ler, ou para aqueles que como o alergologista e o senhor de idade, já leram tudo só de desfolhar, fiquem-se pelos resumos dos capítulos, que fica sempre bem saber para numa festa, uma soirée, um cocktail, responder ao seu interlocutor: "não, está enganado, foi no volume III."

I Volume (Do lado de Swann) – É um relato da infância do narrador em casa dos pais em Paris e de alguns familiares em Combray, no campo. É neste volume que conhece e começa a fantasiar com Gilberte, filha de Swann e Odette de Crecy, utilizando essas duas personagens para fazer um flashback e contar a história do romance entre os dois.

II Volume (À sombra das raparigas em flor) – Neste volume Marcel, que é Proust e que é o narrador, dá-nos a conhecer o mundo das mulheres que venera, bem como a forma como o seu amor por Gilberte se vai desfazendo perante a variedade de criaturas do sexo feminino que o apreciam. Conhece aqui Albertine.
III Volume (Do lado de Guermantes) – Este volume é marcado pela avó do narrador, que ele adorava. É também aqui que se torna possível observar as movimentações das classes sociais para a ascensão de determinadas pessoas. Entre elas, Proust que desde criança tinha vontade de pertencer e ser apreciado pelos senhores de Guermantes.
IV Volume (Sodoma e Gomorra) – É um dos mais reveladores da obra, pois nele ficamos a saber “sem meias palavras” dos comportamentos homossexuais de algumas personagens, como o Barão de Charlus e a própria Albertine, namorada de Proust. A forma como a homossexualidade nos é dada a conhecer, sem sátira, sem gozo, é um exemplo para MUITAS PESSOAS QUE VÃO VER O “ODETE” E RIEM DURANTE O FILME TODO. Neste volume também ficamos a conhecer o comportamento da sociedade da época perante os judeus, através dos constantes comentários ao caso Dreyfus que colocou a França em alvoroço. (Zola chegou a estar preso devido a um manifesto publicado em favor de Dreyfus que foi condenado à morte com base em provas falsificadas, num assunto militar que colocava a sua instituição em causa)
V Volume (A prisioneira) – Aqui Proust descreve em pormenor a forma como vigia Albertine, e como se tortura perante o facto de ela ser lésbica, a fuga dela e o escândalo social que se torna a relação entre o barão de Charlus e Morel.
VI Volume (A Fugitiva) – Quem começar a ler este volume fica “agarrado” porque logo nos primeiros instantes se apercebe da morte de Albertine, o que transtorna muito Proust. Mas a sua dor é aliviada rapidamente, mais rapidamente até do que estávamos à espera. O Barão de Charlus e Morel terminam a relação e este último inicia um romance com Saint Loup, o melhor amigo de Proust. Descobrimos depois que Gilberte, a primeira paixão do narrador, casa com Saint Loup (este mantinha a relação com o amante).
VII (O Tempo Reencontrado) – Este volume e o anterior retratam a Primeira Guerra Mundial e a forma como esses acontecimentos acelararam a passagem do tempo. O último volume é passado em casa dos Verdurin, cuja senhora se tornou por casamento a nova Princesa de Guermantes. Numa festa dada pela Princesa, Proust revê a maior parte das personagens relevantes nos outros volumes e a forma como o Tempo as modelou e como cabe a ele imortalizar esses momentos através da obra de arte.
Isto é chato, não é?

2 Comments:

Blogger Má ideia! said...

curioso, o autor (do ODETE) disse numa "aula" que o pessoal no brazil (público de festival) também riu COMO numa comédia. não sei se dizes que cá se riram COMO numa comédia, se foram eles próprios UMA comédia (tragi-). parece que na coreia ficaram todos sentadinhos, firmes e hirtos. Gostaste do filme? ainda não vi....

17/1/06 10:16 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

Brasil, escreve-se com S!!

20/1/06 2:45 da manhã  

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