sábado, setembro 18, 2021

- o carteiro -
era para o prémio de literatura infantil do pingo doce, mas achei melhor não

Foi num Domingo de Verão,
que ao ver sopa de grão,
o Duarte fez grande birra
e disse “dói-me a barriga”.

Para ver se era verdade,
ou se era da idade,
prometeu-se-lhe uma surpresa,
na hora da sobremesa.

O Duarte muito contente,
excitado e insistente,
perguntou logo “que é?
“Come a sopa”, disse o pai Zé.

A’vó disse que era gelatina,
do tamanho d’uma piscina,
a saber muito a nada,
receita de uma fada.

“É pudim!”, disse a tia
- outra sobremesa não havia -
“pudim de céu cinzento,
co’ nuvens levadas pel’o vento”.

“Também pode ser um pastel”,
disse a mãe com voz de mel,
daqueles de massa folhada,
e recheio de água molhada.

A avó até pensou numa,
torta de coisa nenhuma,
ou num bolinho oco,
ainda por cima, choco.

“Não há chocolate, banana?
Uma coisa c’açucar de cana?
Nem morango, nem cereja?
Qualquer doce que seja?!”

“Há gelado de ar frio,
e mousse de vazio,
e destes comes mais,
destes, deixam os pais”.

Há ainda um soufflê,
daqueles que ninguém vê,
é invisível, é magia!”
Sorriu ao dizer a tia.

“Ou podes comer a sopa,
é abrir e fechar a boca,
não tem nada q’enganar,
é sempre melhor que chorar.

Mas se não quiseres sopa,
que arrefece na copa,
haverá pão-de-ló,
com sabor a dominó.

Ou empadas de rabanete,
com chulé, que cheirete!
Ou bolo de carapau
com cobertura de bacalhau”.

A mãe Daniela até disse
“Que maçada, que chatice,
só é pena não termos aqui,
o salame de sushi!...

“Ah”, continuou a tia,
“a massa é à fatia,
e o pão é às colheres,
Só comes o que quiseres.

Temos ainda batido,
feito com nariz comprido,
e sumo de água quente,
com uma rodela de dente.

Para terminar em beleza,
e estando todos na mesa,
lavamos pratos e talheres,
só deixamos as colheres”.

“Porquê?” perguntou o Duarte
“Pra depois comer a tarte?”
O pai Zé disse logo “não,
“é para a sopa de grão”

“Sopa não, não e não!”
Disse o rapaz sabichão
“posso sair da mesa?
Ir brincar c’a gata Teresa?”

“Fazes o que quiseres
Mas faças o que fizeres
Ouve bem o que te digo:
qu’é pra teu bem, meu amigo.

Não há iogurtes nem pães
Esses desejos reténs
Até à hora de jantar
Não há nada a provar

“Está bem”, disse o Duarte
“Vou brincar que me farte,
Ver a Heidi, a Maia, o Sam
O Paulo, o Noddy, o Megaman”

Começou a contar formigas
Cantou várias cantigas
Brincou à cabra-cega
Desceu do escorrega

Andou de bicicleta
caçou uma borboleta
Fez desenhos e recortes
E juntou depois as partes

Brincou ao faz-de-conta
pegou num pau p’la ponta
Atirou-o ao ar bem alto
E apanhou-o num salto

Fez corridas com o cão
de seu nome Gastão
Atanazou Peúga, o gato
Atirando-lhe um sapato

Jogou jogos de cartas
Perseguiu as lagartas
tocou um instrumento
viu um cano por dentro

Procurou doces amoras
E cheio de nove horas
Quis brincar de rei
Mandando ditar a lei

Colheu flores de lis
Cheirou-as com ar feliz
Riu dos passarinhos
Que ali faziam ninhos

Até que deu as cinco
No relógio de zinco
E o Duarte confessou
que a barriga se queixou

“Tenho fome”, disse ele
“Posso beber aquele
Sumo de ananás
Que o pai lá tráz?

E uma madalena
Aquela mais pequena?
Por favor, obrigado”
Disse o rapaz arrogado

Pediu leite e cereais
com formas animais
pra começar e d’antemão
a comer frente à televisão

“Também iam uvinhas
Das mais clarinhas”
E assim fechou a lista
Bastante fabulista

A gata Teresa miou,
O Gastão bocejou,
O pai olhou para a mãe
Os avós e a tia também

A mãe disse-lhe então
“Só há sopa de grão
Com couve e nabo
Chuchu e quiabo
...

O Duarte pensou muito,
no que lhe haviam dito,
e concluiu que a pirraça,
já não tinha grande graça.

As comidas eram estranhas
Ou enjoavam as entranhas
E não lhe davam de facto
Alternativas ao palato.

Amuado e convencido
Arrastou-se distraído
Até ao lugar na mesa
Junto à Teresa

Entre lágrimas e murmúrios
desculpas, “ais” e calafrios
O Duarte meteu na boca
A primeira colher de sopa

Outras foram-se seguindo
sem vontade ou fastio
mas sem birras nem manias
gritos ou vilanias

Vendo a tristeza do rapaz
E querendo apenas paz
A mãe até interveio
Para pararem a meio

“Queres que te conte
a história do monte
que tinha um rio largo
onde vivia um sargo?”

“Conta antes a história
que teve a vitória...
A história do urso...,
Que ganhou o concurso...”

A mãe surpreendida
Exclamou doida da vida
“Este rapaz é precoce!
Quer a do Pingo Doce!”

12 Comments:

Anonymous Anónimo said...

Bom dia Beluga. Que pena não ter enviado pró concurso. Tantas quadras, tão bem esgalhadas.
Não deixe isto apenas aqui no Belogue, porque parece.me que vale mesmo a pena ser publicado. Parabéns. É um rouxinol da lírica infanto-juvenil (sem ironia ) :))

18/9/21 9:14 da manhã  
Anonymous Anónimo said...

Olá Beluga e dou. lhe mais uma vez os meus parabéns por este poema tão conseguido. Que pena que não o tenha enviado para o concurso. Tinha ganhado com certeza.
Gostei muito da grande  quantidade de quadras, porque os putos também são assim: não querem um chocolate,  querem a caixa toda. Não  querem um brinquedo, querem todos os brinquedos da loja.
Está tudo muito bem encadeado, certinho como uma fuga musical, onde as vozes se encadeiam umas nas outras. Não é preciso que diga qual é a sua ""área"", porque isto não se consegue sem muita tarimba.
Tenho duas perguntas para fazer-lhe, e vou tentar que sejam  o mais claras que me for possível,  porque a escrita não é a minha profissão e haverá certamente termos mais exactos para perguntar o que eu quero perguntar .
A primeira pergunta é se há neste poema uma forma poética modelar, tal como o soneto é  , em abstracto , uma forma poética modelar? Será uma ladainha, uma cantilena, outra, nenhuma?
A segunda pergunta ainda é mais difícil de fazer de maneira clara, mas cá vai: todo o poema é de certa maneira uma negação das vontades do pobre do Duarte, que dê as voltas que der, tem que acabar a comer a sopa de grão. Até à ultima quadra , onde ao Duarte é negada ainda uma"" rima perfeita"". E aqui falta-me mesmo o termo certo e oxalá que perceba o que eu quero dizer: precoce e doce são,  devido à acentuação tónica, duas palavras que não ""rimam perfeitamente"" Numa o O é aberto e na outra é fechado, digamos assim. ( eu podia pesquisar isto melhor, mas agora não me apetece).
Isto é intencional?  É intencional negar tudo ao Duarte até uma rima perfeita na última quadra. A Beluga pensou nisto assim? Não rimar perfeitamente na última quadra pretende ser o equivalente poético duma colher de sopa de grão?
Agradeço-lhe muito o poema e antecipadamente o tempo que vai usar para me responder.
Acho mesmo que deve publicar isto. É mesmo muito bom.
Muito obrigado
p.s. e já agora agradeço-lhe também, se quiser dizer-nos que tipo de rima,há entre precoce e doce, se houver alguma.




18/9/21 8:41 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

Quanto à última pergunta, peço-lhe que não seja demasiado modesta e responda com verdade. A não  ser que queira que eu  escreva para si um "Soneto para as meninas que mentem".

18/9/21 9:00 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

Desculpe-me Beluga. A última parte do último comentário era dispensável.  Tenha um bom domingo

19/9/21 6:39 da manhã  
Blogger Belogue said...

Olá anónimo.
Não sei me está a dar uma grande tanga... de qualquer forma aqui vão as respostas:
1 - é só um conjunto de quadras com uma ordem (primeiro oferecem-lhe comidas "vazias" em alternativa à sopa, em seguia oferecem-lhe comidas intragáveis, depois deixam-no brincar até sentir fome e por fim ele rende-se à fome). No fundo é um poema cruel.
2- eu sei, não rima. Mas eu queria que no fim como um espelho dentro do espelho, dentro do espelho... tenho a certeza que haverá um nome para isto. Queria que ele desejasse a própria história. Não fui muito feliz com a rima que, já que pergunta, é pobre(adjectivo com adjectivo). Há algumas rimas ricas, mas esta é pobre. Em todos os sentidos.

19/9/21 7:29 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

Bom dia Beluga.
Muito obrigado pela sua resposta.
Não,  não se trata aqui duma tanga: eu gostei do seu poema muito sinceramente
Gostei da singeleza das quadras e rimas, perfeitamente adequadas para um leitor/ouvinte infantil.
Gostei como já disse, da quantidade grande de quadras, porque os miúdos querem sempre muito daquilo do  que eles próprios gostam.
A Beluga tem um grande poder de observação e isso enriqueceu o  poema com coisas deliciosas, que no seu poema saem inesperadamente da rotina, onde decorrem quase anónimas (viu um cano por dentro, etc...)
Parece ter também uma grande e muito rica imaginação, que daria para mais uma boa  dezena  de quadras, e fica-se com a sensação que a fonte donde isto tudo saiu não se esgotou. Rendeu-se temporariamente,  tal como o Duarte, mas amanhã começa tudo de novo, não por premeditação mas apenas porque é esta a natureza das coisas
Parece ter  ainda um grande controlo sobre aquilo que escreve, isto é, não é  só inspiração,  como também fica claro na explicação que dá na sua resposta (primeiro oferecem-lhe comidas "vazias" em alternativa à sopa, em seguida oferecem-lhe comidas intragáveis, etc...).
Gostei muito do seu poema por tudo isto e certamente por muito mais, que eu próprio não consigo racionalizar e ainda bem que é assim.
Lamento, também sinceramente, que não o tenha levado ao concurso e acho que devia tentar publicá-lo.
Sei que tenho abusado da sua boa vontade,  agradeço-lhe a pachorra que tem tido para mim (acho que eu já me pus várias vezes à jeito para uma cantiga de mal dizer), mas permita-me que, ainda assim, lhe faça mais uma pergunta e um pedido.
A pergunta é sobre as regras do concurso: era obrigatório incluir o nome do supermercado no poema? Era obrigatório incluir o nome  Pingo doce?
O pedido era que publicasse aqui mais um poema seu, um que lhe parecesse mais adequado.
Quanto à quadra final, agradeço-lhe a explicação que deu e vou pensar um pouco sobre o que escreveu, para tentar perceber melhor.

Eu acho que já escrevi aqui alguma coisa sobre o Esteves da  "Tabacaria" ,de Álvaro de Campos. Ele é Esteves, com s, e nao Esteve , é plural, e a sua pluralidade, um tema central em Pessoa, começa logo neste s final ,que é a regra geral para a construção do plural em português.  É  uma coisa subtil, quase que não se dá por ela por ser tão corrente e vulgar haver pessoas que têm um nome com um s no fim. É uma coisa em que não pensamos. Mas não  escapa ao olhar dum poeta.
O poeta tem que acreditar que um s, um simples s,  um  modesto e pobre s que nao rima com nada, um s do qual ninguém dá contas ,está justamente colocado ali à espera que alguém o traga para a luz do sol.

Aqui fica uma oferenda musical: quadras :)) numa exposição,  de Modesto Mussorgsky,  na versão para piano, que eu acho mais sugestiva.

https://youtu.be/9OdfoDsAkRk

Muito obrigado e tenha um bom dia e uma boa semana

20/9/21 4:16 da manhã  
Anonymous Anónimo said...

Errata: aonde decorrem quase anónimas (viu um cano por dentro, etc...)

20/9/21 4:38 da tarde  
Blogger Belogue said...

Fica para amanhã. Estou muito cansada

20/9/21 10:09 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

https://m.facebook.com/story.php?story_fbid=413506840138759&id=100044383391047

21/9/21 5:54 da tarde  
Blogger Belogue said...

(Come chocolates, pequena;
Come chocolates!
Olha que não há mais metafísica no mundo senão chocolates.

21/9/21 8:35 da tarde  
Blogger Belogue said...

olá anónimo. hoje vai à valter hugo mãe, sem maiúsculas

"e fica-se com a sensação que a fonte donde isto tudo saiu não se esgotou. Rendeu-se temporariamente" - sou com um arbusto junto a um eucalipto.
"Parece ter ainda um grande controlo sobre aquilo que escreve" - aquilo que escrevo é que tem controlo sobre mim. por isso não consigo escrever nada longo: perco fio à meada e a história é que me leva, nunca levo a história.
"uma cantiga de mal dizer" - olhe... não estivesse a escrever outra história infantil, e dedicava-lhe uma cantiga de mal dizer. não porque mereça, mas pelo exercício em si
"era obrigatório incluir o nome do supermercado no poema? Era obrigatório incluir o nome Pingo doce?" - não, não era. eu é que queria para se perceber que era uma história dentro da história. e no fundo, para dizer que dominava tão bem a técnica que poderia incluir ali a palavra "pingo doce" e fazê-la rimar. saiu-me um bocadinho ao lado
""Tabacaria" ,de Álvaro de Campos" - e eu, sem me lembrar que neste comentário referia a tabacaria, citei uma parte no comentário abaixo.
"por ser tão corrente e vulgar haver pessoas que têm um nome com um s no fim" - assim de repente só me lembrei de martins. estava a pensar aqui comigo que não se usam os sobrenomes para designar uma senhora. ninguém diz "a dra. sousa e melo", mas dizem "o dr. sousa e melo". é um exemplo, só.
"oferenda musical" - muito obrigada! já estive a ouvir

quanto ao poema, quem sabe se não escrevo um de mal dizer.
boa noite
vou dormir

21/9/21 8:51 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

Boa noite Beluga
Assim de repente lembrei-me de Alves, Neves , Gomes e Gonçalves.
Desejo-lhe os maiores sucessos para a sua nova história infantil.
Eu também vou escrever um soneto.Não é que a Beluga mereça nem o soneto será
para si. Já tenho algumas rimas: rouxinol, caracol e para mostrar dominio da técnica, folha de alface do Pingo doce. Tudo muito simples...:))
Desejo-lhe tudo de bom. Agora preciso de focar-me numa ou em duas coisas que tenho em mãos e estarei ausente durante algum tempo.
Bem haja

22/9/21 2:40 da manhã  

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