terça-feira, maio 26, 2020

- o carteiro -













Van Gogh
Still Life: Vase with Fourteen Sunflowers,
1888
National Gallery, Londres


quando a minha idade era outra que não esta, o dinheiro escasseava, nós sabíamos disso e éramos felizes. só não sabíamos que éramos felizes. fazíamos férias em parques de campismo, numa tenda gigante que parecia a cantina de um hospital de campanha, tenda essa que tinha dois quartos, uma "sala" com televisão (porque a televisão fazia parte da família) e um avançado onde se cozinhavam os melhores e mais pobres pequenos almoços da minha vida: leite com café e pão quente com manteiga. eu salivava da tenda à padaria e da padaria à tenda. bem… a padaria não era bem uma padaria. era um minimercado dentro do parque (um luxo, para a época) onde nos abastecíamos de pão e... gelo. todos os santos dias trazíamos gelo para mala térmica, responsabilidade do meu pai e que ele, vá-se lá saber porquê, tratava como uma filha. lembro-me de, todos os anos, descobrir na tenda e naquela mobília portátil uma nova janela, um novo atilho, mais um fecho. funcionalidades mil que transformavam as férias numa caça ao tesouro.

esfarrapava os joelhos todos os anos na rampa do parque de campismo de São Pedro de Moel, atirava-me à água sem bóia e metia conversa com turistas a quem os meus pais davam boleia e a quem ofereciam parte dos caranguejos que tínhamos apanhado, divididos em dois grupos: eu e o meu pai dávamos o nosso melhor a pescar à linha, a minha mãe e o meu irmão ganhavam-nos na apanha dos caranguejos. comíamos "jaquinzinhos" fritos com arroz de tomate "malandro" (embrulhado em papel de jornal) em cozinhas comunitárias entre a praia e o pinhal. dormíamos a sesta em redes de baloiço, passávamos a tarde na água: eu a boiar, o meu irmão a fazer...coisas. o meu pai fazia coca-cola (café gelado com muito açúcar) e, exceptuando as bolinhas que na verdadeira coca-cola subiam ao nariz, aquela coca-cola era igual à outra. conhecíamos gente com quem partilhávamos o produto das nossas pescas e trocávamos as únicas palavras que sabíamos: "poisson?", "merci". Aprendíamos inglês e francês através de uma ladainha que repetíamos até às lágrimas, ensinada pelos nossos pais: "I like banana because n'y a pas de caroço". Ouvíamos Boney M, Earth Wind and Fire e Village People enquanto viajávamos de carro por um país mais limitado do que hoje, em parte porque as estradas eram outras, em parte porque o dinheiro não dava para tudo. Mas às vezes - grande maluqueira quando os anos eram de vacas gordas - íamos passar férias ao Algarve. Viagens intermináveis de carro, pneus furados, sanduíches de queijo e fiambre em moletes comidos na berma de pinhais, quase a seco.

às vezes, antes mesmo da época alta, eu e o meu irmão antecipávamos as férias prendendo um cobertor no sofá, entre a parte de cima deste e a parede, e por baixo das almofadas, fazendo assim uma tenda. entrávamos no tenda pelo lado do braço do sofá. connosco entrava também toda a roupa necessária (porque eu não queria que nos faltasse nada) e por vezes tachos e pacotes de arroz. quando era hora de vir embora do campismo de sala, tirávamos o cobertor e transformávamos o sofá num carro. voltávamos a casa, de onde não tínhamos chegado a sair, sãos, salvos, cansados das férias e caladinhos temendo que a minha mãe descobrisse a roupa passada a ferro feita numa trouxa.

depois… depois não me lembro bem. acho que veio a adolescência e tudo mudou. passei a chamar a convivência de promiscuidade, os amigos abriam pontos de comparação em questões até aí impensáveis, os fatos de banho eram assim como os vestidos da primeira comunhão usados para ir às aulas de biologia no oitavo ano. a autoconsciência é uma merda das valentes.