- o carteiro -
Fortuny, Carpaccio e Proust (não necessariamente por esta ordem)
Mais do que a pintura francesa (Manet e os seus espargos, O Dejeuner des Canotiers e outros) ou a holandesa (o "pano de muro amarelo" de Vermeer), a verdade é que a grande referência artística do Em Busca do Tempo Perdido (a Recherche, daqui para a frente) é a pintura italiana e veneziana (não que Veneza não pertença a Itália, mas percebem o que quero dizer), à excepção, claro da pintura de Elstir. Entre os representantes desta pintura italiana, há uma breve referência a Ticiano e Veronese, mas o nome grande - e que vai crescendo na Recherche - é sem dúvida o de Carpaccio.
"Não", dizem vocês. "Sim", digo eu.
Antes mesmo de escrever a Recherche, Proust já demonstrara interesse pela pintura de Carpaccio após a tradução de Ruskin que a refere, bem como após a viagem que empreendeu a Veneza em 1900. Viu os Carpaccio na Galleria dell'Accademia e na Igreja de San Giorgio dei Schiavoni. Nesta história, como em toda a Recherche, a realidade serve de inspiração à ficção, mistura-se com ela. Não é só Charles Ephrussi que está na base de Swann, nem Alfred Agostinelli que poderá, diz-se, estar na base de Alebrtine,1 mas também Carpaccio na base de Fortuny (embora neste caso ambos sejam reais e não ficção). Carpaccio em Proust funciona como a madalena no chá: espoleta (e não despoleta) a memória. A primeira referência a Carpaccio na Recherche surge quando o narrador Marcel fala de Oriane de Guermantes relacionando-a com a música de Wagner e os quadros de Carpaccio:
"Seus olhos azulavam como uma pervinca impossível de ser colhida e que, no entanto, me fosse dedicada; e o sol, ameaçado por uma nuvem, mas ainda despedindo, com toda a força sobre a Praça e na sacristia, seus raios de luz, dava uma encarnação de gerânio aos tapetes rubros que tinham sido estendidos para a solenidade e sobre os quais se adiantava sorrindo a Sra. de Guermantes, e acrescentava à lã deles um róseo aveludado, uma derme nua, esta espécie de ternura, de grave doçura na pompa e na alegria que eriçam certas páginas de Lohengrin, certos quadros de Carpaccio, e que fazem entender que Baudelaire tenha podido atribuir ao som do clarim o epíteto: delicioso." (PROUST, Marcel - Em Busca do Tempo Perdido: O Lado de Swann. Lisboa: Relógio d'Água, 88)
Proust, que conhecia a obra de Carpaccio até pelo que foi dito em cima, deveria estar a referir-se a uma obra em especial que calculo seja "Incontro dei Fidanzati" do "O Sonho de Santa Úrsula":
Carpaccio
Incontro dei Fidanzati (pormenor)
1495
Galleria dell'Accademia, Veneza
No segundo volume da Recherche volta-se a Carpaccio quando Elstir evoca as suas pinturas deste ciclo do Sono de Santa Úrsula:
"Havia torneios marítimos como agora, geralmente em honra de alguma embaixada semelhante àquela que Carpaccio representa na Lenda de Santa Úrsula. Os navios eram maciços, construídos como arquiteturas, e pareciam quase anfíbios como Venezas menores no meio da outra, quando, unidos por meio de pontes levadiças, recobertos de cetim escarlate e de tapetes persas, levavam mulheres de brocado cereja ou de damasco verde até junto dos balcões incrustados de mármores multicores onde outras mulheres se debruçavam para ver, em seus vestidos de mangas negras,cujas aberturas de forro branco eram bordadas com pérolas ou ornadas de rendilhado fino. Não se sabia mais onde acabava aterra e onde começava a água, o que ainda era palácio ou já formava o navio, a caravela, a galeaça, o Bucentauro." (PROUST, Marcel - Em Busca do Tempo Perdido: O Lado de Swann. Lisboa: Relógio d'Água, 206)
"Havia torneios marítimos como agora, geralmente em honra de alguma embaixada semelhante àquela que Carpaccio representa na Lenda de Santa Úrsula. Os navios eram maciços, construídos como arquiteturas, e pareciam quase anfíbios como Venezas menores no meio da outra, quando, unidos por meio de pontes levadiças, recobertos de cetim escarlate e de tapetes persas, levavam mulheres de brocado cereja ou de damasco verde até junto dos balcões incrustados de mármores multicores onde outras mulheres se debruçavam para ver, em seus vestidos de mangas negras,cujas aberturas de forro branco eram bordadas com pérolas ou ornadas de rendilhado fino. Não se sabia mais onde acabava aterra e onde começava a água, o que ainda era palácio ou já formava o navio, a caravela, a galeaça, o Bucentauro." (PROUST, Marcel - Em Busca do Tempo Perdido: O Lado de Swann. Lisboa: Relógio d'Água, 206)
De facto, nesta pintura de Carpaccio do ciclo referido vemos que o barco no centro da pintura tem a mesma altura dos edifícios que o ladeiam. O mesmo acontece com outro quadro do ciclo, cujo título é "Arrivo dei Pellegrini a Colonia". Os barcos possuem a mesma altura e imponência dos edifícios à volta e mesmo à medida que passamos aos planos secundários, os barcos continuam a ser da dimensão das estruturas arquitectónicas.
Carpaccio
Arrivo dei Pellegrini a Colonia
1490
Galleria dell'Accademia, Veneza
Quando visitou Veneza em 1900, Proust descreveu as suas impressões, relativas aos Carpaccio, à sua amiga Maria de Madrazo, irmã de Reynaldo Hahn e tia de Fortuny. E quem era Fortuny? Fortuny era nem mais nem menos que o maior estilista da época. Mariano Fortuny y Madrazo, de origem espanhola, mas veneziano a partir de 1889, foi pintor, inventor e costureiro, vestindo todas as elegantes do início do século. Criou os famosos vestidos Delphos, baseados na arquitectura, escultura e cultura clássicas, vestidos todos plissados e com motivos bizantinos.
Fortuny
Vestido Delphos
1915
[Não sei porquê, mas este vestido parece o frasco de Organza da Givenchy.]
Ora é justamente a Fortuny que Marcel, o narrador, encomenda um vestido para Albertine levar a Versalhes, na noite anterior ao seu desaparecimento.
"Guardando de meu sonho de Veneza apenas o que podia referir-se a Albertine e suavizar o tempo que ela passava em minha casa, falei-lhe de um vestido de Fortuny que era necessário que encomendássemos por aqueles dias." (PROUST, Marcel - Em Busca do Tempo Perdido: A Prisioneira. Lisboa: Relógio d'Água, 75)
"assim, os chambres de Fortuny, fielmente antigos mas poderosamente originais, faziam surgir como um cenário, e até com maior força de evocação do que um cenário, pois que o cenário ficava por imaginar, a Veneza toda atulhada de Oriente" (PROUST, Marcel - Em Busca do Tempo Perdido: A Prisioneira. Lisboa: Relógio d'Água, 153)
E é quando, já após a fuga de Albertine, o narrador vê em Veneza a pintura "Le Patriarche du Grado" de Carpaccio, se recorda de Albertine dessa noite em que usou o vestido de Fortuny:
(...) Carpaccio, e que essa mulher de faces avermelhadas, olhos tristes, com seus véus negros, e que nada poderá jamais, para mim, fazer sair daquele santuário suavemente iluminado de São Marcos, onde estou certo de reencontrá-la, pois ela tem o seu lugar reservado e imutável como um mosaico, seja a minha mãe. Carpaccio, a quem acabo de citar e que era o pintor ao qual, quando eu não trabalhava em São Marcos, fazíamos visitas com mais frequência, precisou um dia reanimar o meu amor por Albertine. Eu via pela primeira vez O Patriarca de Grado Exorcizando um Possesso. [...] quando senti, de repente, como que um leve aperto no coração. Às costas de um dos companheiros da Calza, reconhecível pelos bordados de ouro e pérolas que inscrevem em suas mangas ou coletes o emblema da risonha confraria à qual eram filiados, eu acabava de identificar o casaco que Albertine usava quando fora comigo à Versalhes em carro descoberto, na noite em que eu estava longe de pensar que apenas quinze dias me separavam do momento em que ela iria embora de minha casa. Sempre disposta a tudo, quando lhe pedira que partisse, naquele triste dia que ela deveria chamar, em sua última carta, duas vezes crepuscular, visto que a noite caía e nós falamos em nos separar, ela atirava aos ombros um casaco de Fortuny que levara consigo no dia seguinte e que, desde então, eu jamais tornara a ver em minhas lembranças. Ora, era neste quadro de Carpaccio que o genial filho de Veneza o utilizara, fora nas costas desse membro da Calza que o havia assinalado, a fim de lançá-lo sobre tantas parisienses que decerto ignoravam, como eu até agora, que o modo num grupo de cavalheiros, no primeiro plano do Patriarca de Grado, numas Academia de Veneza. Eu reconhecera tudo e, tendo esquecido casaco, ao vê-lo, os olhos e o coração daquele que ia, naquela noite, partir para ir com Albertine, fui invadido, durante alguns instantes, por um sentimento, da dor, logo dissipado, de desejo e de melancolia." (PROUST, Marcel - Em Busca do Tempo Perdido: A Fugitiva. Lisboa: Relógio d'Água, 106-107)
Carpaccio
Carpaccio
The Healing of the Madman (pormenor)
1496
Gallerie dell'Accademia, Veneza
1496
Gallerie dell'Accademia, Veneza
Não será por acaso que Proust faz esta associação entre este Carpaccio e Fortuny. Li que na borla do capuz (assinalada no quadrado amarelo) está escrita a expressão "Com Tempo" o que não deixa de ser paradigmático num livro que fala disso, do Tempo.
1 - Alfred Agostinelli foi o grande amor de Proust. Motorista do escritor, juntamente com Odilon Albaret, acabou por, tal como Albertine, partir.
Anda Toucard
Alfred Agostinelli e Odilon Albaret
1908
Biblioteca Nacional de França, Paris
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