quarta-feira, outubro 23, 2013

- o carteiro -

arte em frança durante a ocupação - primeira parte

Quer pelo lendário bigode quer pela ideologia execrável, Hitler foi e continua a ser alvo de muitas anedotas e histórias. Hoje contamos duas histórias verdadeiras acerca do Führer, mas que nem por isso são dotadas de menos interesse que as anedotas. A primeira leva-nos a recuar até o dia 28 de Junho de 1940, dias antes da assinatura do Armistício, quando Hitler, numa clara demonstração de poder se passeia por Paris. O arquitecto Speer que nos conta este episódio nas suas memórias diz-nos que o ditador alemão visitou o Louvre e mostrou ser conhecedor daquele espaço, algo que fazia frequentemente quando se encontrava acompanhado. Entre as várias obras que Hitler e a sua comitiva puderam observar não se encontrava uma que pouco tempo depois veio a fazer parte da colecção pessoal do Führer e que em 1982 foi integrada no Louvre: O Astrónomo de Vermeer.

Hitler era, tal como Göring um apaixonado por Arte e Arquitectura. De facto, Hitler havia estudado arte na sua juventude, antes de decidir transformar-se no mais terrível ditador que a história recorda. Mas, e após duas tentativas falhadas de admissão à Academia, desistiu da sua paixão e o mundo, infelizmente, perdeu um mau artista. No entanto, mesmo no campo político o Führer sempre usou a arte como forma simbólica de exercer poder. Relativamente ao Astrónomo, que é a primeira das nossas histórias, o quadro era geralmente acompanhado de um outro, O Geógrafo do mesmo autor, quadro com a mesma tipologia temática e tratamento pictórico. O Astrónomo representa um homem junto a uma janela, a consultar o globo terrestre e a proceder a inúmeras marcações, tendo por cenário uma divisão decorada com um quadro, quadro esse intitulado Moisés Salvo das Águas. O mesmo quadro encontra-se também no mesmo contexto (ou seja, a servir de pano de fundo a uma cena) na tela Senhora Escrevendo uma Carta com a sua Aia, igualmente de Vermeer. O que Hitler nunca percebeu no quadro é que este mostra o salvamento das águas de Moisés; uma cena do Antigo Testamento em que se baseia o Judaísmo, para além de mostrar o próprio percursor do Judaísmo que sendo salvo, deu origem a esta religião.

















Vermeer
The Astronomer
c. 1668
Musée du Louvre, Paris


















Vermeer
The Astronomer (pormenor)
c. 1668
Musée du Louvre, Paris


















Vermeer
Lady Writing a Letter with Her Maid
c. 1670
National Gallery of Ireland, Dublin
















Vermeer
Lady Writing a Letter with Her Maid (pormenor)
c. 1670
National Gallery of Ireland, Dublin

A outra história é-nos relatada por Ernest Hanfstaengl, um amigo de Hitler antes de este se transformar no orador que conhecemos. Um dia, no início dos anos 20, ao percorrer a Galeria Nacional de Berlim, Hitler maravilhou-se com o quadro Homem com Capacete de Ouro de Rembrandt. O ditador discorre acerca de Rembrandt dizendo que não obstante o pintor holandês ter pintado frequentemente os bairros judeus era na realidade um verdadeiro ariano e um alemão. Hitler busca também na mesma galeria um outro autor que admira: Miguel Ângelo. Na realidade a galeria não possuía nenhuma obra deste autor, mas perante São Mateus e o Anjo de um outro Miguel Ângelo, Michelangelo Merisi da Caravaggio – Hitler estaca e encomia a pintura. O que nos mostram estas duas histórias? Que não obstante Hitler ser um apreciador de arte, era um apreciador de arte limitado, como um falso amante que se dedica ao ser amado e não à arte de amar em si. De facto, e ao longo de anos de regime nazi, veremos que os gostos pessoais do Führer e as suas concepções acerca do belo o limitam, bem como limitam os seus seguidores, nas imensas possibilidades que a arte moderna abre. Vemos assim como Hitler tenta obnubilar a relação indubitável existente entre os pintores holandeses e a comunidade judaica, bem como confunde “a rima com a poesia” ao confundir dois dos maiores pintores italianos.

Quando instituído o Governo de Vichy após a rendição francesa, o regime nazi viu-se no melhor dos mundos: uma cidade (Paris), centro do mercado artístico da época, repleta de colecionadores e galerias de arte; ou seja, a coutada ideal para o caçador perseguir as presas. As presas eram as dezenas de colecionadores de arte, uma boa fonte de abastecimento de obras para o regime conseguir dar resposta a um sonho de Hitler: criar um museu de verdadeira arte em Linz, e limpar assim o mundo das perniciosas obras de arte degenerada, ou seja, arte moderna que englobava, segundo as preferências do Führer, o Dadaísmo, o Cubismo, o Surrealismo, mas também o Impressionismo e o Pós Impressionismo bem como todas as realizações de artistas judeus. Entre esses colecionadores estavam nomes como Paul Rosenberg, Alphonse Kann, os Rothschild, os Bernheim-Jeune e os David Weill, entre muitos outros que a história não recordou como estes. O esquema parecia simples mas na realidade era de uma complexidade que demonstrava o quão importante era a arte para o regime, tanto que quando começou o julgamento de Nuremberga uma das acusações que pesava sobre os réus era a da espoliação cultural. Tudo começava pelo próprio estatuto do habitante em França durante a Ocupação: os habitantes podiam ser despojados de tudo quanto possuíam. Nesse sentido, as mais belas casas e palácios foram ocupados pelas forças nazis que aí instalavam o seu lar ou ministérios, e o seu recheio totalmente saqueado. Após a purga, milhares de peças de arte degenerada ou não, como quadros, esculturas, bandeiras, cerâmica, milhões de manuscritos e até roupa de cama, foram levadas para armazéns localizados um pouco por toda a Paris. Um desses armazéns era o Museu Jeu de Paume. Eram três as entidades que procediam à confiscação: a Direcção Militar para a Protecção da Arte, a Embaixada Alemã em Paris e o ERR, ligado a Göring, sendo este ultimo o que mais eficazmente e de forma mais marcadamente sistemática despojou os franceses dos seus bens artísticos. Inicialmente o ERR era um pequeno serviço que confiscava as bibliotecas dos opositores políticos do Partido. Porém através de um decreto de 1940 passou a estar responsável pela confiscação de obras de arte na zona mais rica da França ocupada. Contava com cerca de 60 funcionários, entre historiadores de arte, fotógrafos, camionistas e galeristas colaboracionistas que venderam por muito pouco os autores que representavam. Após a chegada das obras ao Jeu de Paume as mesmas eram classificadas: as boas obras de arte, segundo os conceitos alemães, ocupavam as primeiras e mais amplas salas do museu enquanto as obras de arte degenerada eram relegadas para aquilo a que se chamava, em tom jocoso, Sala dos Mártires, no fundo do museu. Todas elas eram classificadas quanto à sua proveniência: por exemplo “ka 8”; ou seja, a oitava obra do lote pertencente a Alphonse Kann, mas também quanto à data, dimensões e título provável da obra. Uma prova de que “quem nunca comeu melaço, quando come se lambuza” foi a forma como alguns quadros foram classificados. Assim, a Mulher de Vermelho e Verde de Léger foi descrita como Cavaleiro com Armadura, o que mostra que os oficiais nazis não só não possuíam qualquer conhecimento da arte moderna como também da de Léger em particular, um autor que nunca pintou qualquer quadro com essa temática, e por fim, que estavam orientados para um pensamento bélico, incapazes por isso de ver para além da aparência. Em seguida eram retiradas dos lotes as obras destinadas a Hitler. Para se certificar que tinha tudo o que desejava, o próprio Führer percorria o Jeu de Paume indicando as obras que lhe apraziam.
















Fernand Léger
La Femme en rouge et vert
1914














Jeu de Paume
Sala dos Mártires
Segunda Guerra Mundial