segunda-feira, março 26, 2012

- o carteiro -

estou a estudar iconografia religiosa, que é como quem diz, iconografia do cristianismo e tenho aprendido que coisas que me dão muito prazer aprender. quero por isso partilhar com vocês algumas ideias. uma delas é que a bíblia, a bíblia que hoje conhecemos assim, com estes textos e sem imagens, é uma coisa relativamente recente (1943 com o Papa Pio XII). até aí a liturgia era feita através de Vulgata; ou seja, a tradução de São Jerónimo havia feito da bíblia. aliás, só com o concílio de trento, no século XVI é que ficou definido, em definitivo, o cânone bíblico, sendo deixados de lado os evangelhos apócrifos do antigo testamento e os textos apócrifos do novo testamento por serem considerados demasiado fantasiosos. de facto, a sua datação é posterior aos canónicos, cerca do século IV... mas não era só a Vulgata que inspirava as celebrações do mistério e da palavra de Cristo. existiam igualmente a Biblia Pauperum (acentuar o "pa") e o Speculum Humanae Salvations, ambos documentos e fontes gráficas, mais que literárias.

e coloca-se aqui novamente a questão do analfabetismo e se as pessoas sabiam ou não ler. não, não sabiam ler. mesmo os monges eram pessoas, na sua maioria, pouco instruída. a ideia que muita da escultura arquitetónica era feita para catequizar os crentes e os prosélitos, está assente numa carta que o Papa Gregório (não me perguntem o número porque não sei), escreveu ao bispo Serenus aquando de uma revolta iconoclasta no Oriente, que o Ocidente condenava, não fazendo também a apologia da adoração da imagem, o que não quer dizer que não fizesse a apologia da adoração da imagem em absoluto. quer isto dizer que, enquanto o mundo da antiguidade era um mundo do livro e da leitura, do conhecimento, este novo universo medieval é analfabeto e daí a importância de fazer chegar às pessoas, incluindo os monges, os religiosos, a mensagem de Cristo. a biblia pauperum é a bíblia dos pobres, ou para os pobres, mas não para os pobres que andam no campo e antes para os pobres monges. apresenta-se de uma forma muito simples que parece não ter qualquer lógica, mas tem. é composto por quatro cenas, sendo que a central é sempre do novo testamento. esta cena central está rodeada depois por duas laterais do antigo testamento. em cima e em baixo encontramos personagens como profetas os reis, com filactérias com alguns dizeres. o aspecto de um fólio da biblia pauperum é este:
Biblia Pauperum
1474-1475
The Bodleian library, Oxford

podem ser coloridas ou não, podem ter mais alguns pormenores, mas o aspecto geral é este. vemos ao centro o episódio do novo testamento: a ressurreição de Cristo. até aqui tudo bem. mas o que fazem estas duas imagens do antigo testamento aqui? e porquê estas - que se repetem nas diferentes versões - e não outras? do lado esquerdo temos sansão a arrancar as portas da cidade onde se encontrava (Disseram aos habitantes de Gaza: «Sansão veio cá.» Armaram-lhe uma emboscada durante toda a noite, às portas da cidade, e assim se mantiveram toda a noite, dizendo : «Esperemos a luz da manhã, e en­tão o mataremos.»Sansão, po­rém, não dormiu mais do
que até à meia-noite; à meia-noite levantou-se, agar­rou os batentes da porta da cidade com os dois postes, arrancou-os com os ferrolhos, pô-los às costas e levou-os até ao alto do monte que fica em frente a Hebron. - Jz16; 2-3). Do lado direito temos jonas a sair da boca do peixe ("Então, o Senhor ordenou ao pei­­­xe e este vomitou Jonas em terra firme" - Jn2; 11). estas duas imagens são prefigurações da imagem central; ou seja, são imagens que no antigo testamento já vinham anunciar aquilo que o novo confirma. são elas a prova, ou queria-se que fossem, da veracidade das escrituras. as prefigurações faziam aquilo que santo agostinho dizia: que o antigo testamento estava latente no novo e o novo estava patente no antigo. o que santo agostinho diz é um pouco aquilo que cristo tinha dito: "Não penseis que vim revogar a Lei ou os Profetas. Não vim revogá-los, mas levá-los à perfeição" (Mt5; 7). Ora então, e assim como Sansão conseguiu libertar-se da prisão, e assim como jonas se libertou da boca do peixe após três dias dentro dele, também Cristo havia ressuscitado no terceiro dia após a sua morte. entre as figuras de profetas/reis temos em cima:
david em representação do salmos, em concreto, deste: "Mas o Senhor despertou, como que estremunhado,qual guerreiro vencido pelo vinho." (Sl78; 65) e ao lado uma passagem dos Génesis: "Tu és um leãozinho, Judá, quando regressas, ó meu filho, com a tua presa! Ele deita-se. É o repouso do leão e da leoa; quem ousará despertá-lo?" (Gn49; 9). Nesta parte o texto refere-se a Judá como uma cria de leão, já que no bestiário medieval, o leão podia ser relacionado com Cristo. Segundo o bestiário as crias de leão nasciam mortas e ressuscitavam ao terceiro dia ou por acção da mãe ou por acção do pai que lhes rugia. Da mesma forma Cristo havia ressuscitado após três dias no mundo dos mortos. Em baixo encontramos Sofonias que escreveu: "Por isso, ouvi-me – diz o SENHOR –esperai o dia em que me levantarei como testemunha; porque decidi reunir as nações e juntar os reinos à minha volta, para descarregar sobre eles o meu furor,todo o ardor da minha cólera. Porque pelo fogo do meu zelo será consumida toda a terra." (Sf3; 8). Por fim temos o profeta Oseias: "Conheçamos, esforcemo-nos por conhecer o Senhor; iminente, como a aurora, está a sua vinda; Ele virá para nós como a chuva, como a chuva da Primavera que irriga a terra.»" (Os6; 3)

Mas nem só de biblia pauperum vivia o homem. pensa-se que o speculum humanae salvationis teria sido escrito por Ludolfo da Saxónia que também havia escrito Vitae Christi. este "livro" tinha como objectivo mostrar como a redenção havia sido preparada de forma a o Homem recuperar a inocência perdida por causa do pecado original. a estrutura dos fólios é semelhante à da biblia pauperum, e até há semelhanças no ideologia (mostrar que o novo testamento estava previsto no antigo), mas com algumas diferenças. Primeiro, a página deve ser vista aberta, e devem ser lidas as quatro imagens: um do novo testamento e as restantes três do antigo. Depois, há nomes próprios: a página da esquerda chama-se verso e a da direita recto. Não consegui uma imagem com as quatro cenas juntas, por isso coloco-as duas a duas. Nas primeiras duas vemos a Anunciação a Maria, uma cena que é do Novo Testamento. Sabemos dela por isto: "E, entrando o anjo aonde ela estava, disse: Salve, agraciada; o Senhor é contigo; bendita és tu entre as mulheres. E, vendo-o ela, turbou-se muito com aquelas palavras, e considerava que saudação seria esta. Disse-lhe, então, o anjo: Maria, não temas, porque achaste graça diante de Deus.

E eis que em teu ventre conceberás e darás à luz um filho, e por-lhe-ás o nome de Jesus. (Lc1, 28-31). Mas as três imagens seguintes já mostram cenas do Antigo Testamento. A primeira refere-se a Moisés e a sarça ardente, quando Deus apareceu a Moisés: "E apareceu-lhe o anjo do SENHOR em uma chama de fogo do meio duma sarça; e olhou, e eis que a sarça ardia no fogo, e a sarça não se consumia." (Ex 3, 2)Vemos o Senhor em cima de uma árvore. A sarça é uma planta, mas às vezes quando atacada por um parasita parece ficar consumida pelo fogo. A sarça que arde, mas não se consome é como a nossa alcachofra no Manuelino! Depois disto podemos ver Gedeão e o velo: " E disse Gedeão a Deus: Se hás de livrar a Israel por minha mão, como disseste, Eis que eu porei um velo de lã na eira; se o orvalho estiver somente no velo, e toda a terra ficar seca, então conhecerei que hás de livrar a Israel por minha mão, como disseste. E assim sucedeu; porque no outro dia se levantou de madrugada, e apertou o velo; e do orvalho que espremeu do velo, encheu uma taça de água." (Jz 6; 36-38). Para que conste, Gedeão (ou Gideão) libertou Israel e recebeu de Deus essa missão quando o mesmo Deus provou a sua existência, fazendo com que o velo se molhasse pelo orvalho, mas a terra não. Por fim temos Rebeca a oferecer água Eliezer: " Eis que estou junto à fonte de água; seja, pois, que a donzela que sair para tirar água e à qual eu disser: Peço-te, dá-me um pouco de água do teu cântaro;
E ela me disser: Bebe tu e também tirarei água para os teus camelos; esta seja a mulher que o Senhor designou ao filho de meu senhor." (Gn 24; 43-44). Rebeca, futura mulher de Isaac, enche então uma taça de água do poço para dar a Eliezer, servo de Isaac.

A razão para estas quatro cenas aparecerem sempre juntas tem alguma elaboração, embora não seja impossível. Assim, e tendo por base o aparecimento do anjo a Maria, sabemos que: assim como Maria dá à luz permanecendo intacta (virgem), também a sarça ardia sem se consumir; assim como Maria não se consome no pecado da carne, também a terra permaneceu seca aquando da chuva/orvalho; e assim como Maria foi esposa de Cristo e acolheu as palavras do anjo, também Rebeca vai ser esposa de Isaac e acolhe as palavras do seu servo. Quer isto dizer que antes de ser anunciado, no Novo Testamento, que Maria iria ser mão de Jesus, já o Antigo tinha predito isso.

e com isto vou embora. tinha mais para dizer - não sobre isto, sobre outras coisas - mas tenho de ir acabar um trabalho que está mesmo no finzinho. Não tenho muita vontade, mas tem de ser. fico sempre sem vontade de acabar aquilo que começo. acho que sou uma insatisfeita de vocação.

Speculum Humanae Salvationis
1474-1475
The Bodleian library, Oxford

Speculum Humanae Salvationis
1474-1475
The Bodleian library, Oxford