- o carteiro -
um bocadinho de escatologia por dia ajuda-o a trabalhar, descansar e divertir-se*
Para acabar o ano em beleza (que é como quem diz, em terror), nada como falar da vida e daquilo que ainda podemos fazer enquanto estamos vivos.** Estava aqui a rever os apontamentos da aula de História da Arte e Culturas Clássicas que comparava a crescente representação humana em comparação com a decrescente representação do animal. Assim que na arte o Homem aperfeiçoa a técnica deixa de retratar animais para passar a retratar-se. É quase como se ele não se achasse digno da sua própria obra. À medida que caminhamos para o início do primeiro milénio, os gregos, por exemplo, apesar de terem pleno conhecimento do animal, preferem o ser humano. E mais ainda, à medida que o Homem percebe o seu papel no mundo, à medida que o teologia se forma e se normaliza, à medida que que normaliza a religião (no caso grego, a pagã) o Homem torna-se autor do seu destino. Esquece então a representação animal e passa para a representação antropomórfica. Os animais diminuem à medida que decresce o valor mágico deles e os artistas se movem para os grandes centros. Os animais que subsistem são os associados ao poder como as panteras, os leões e as águias, e aqueles que são vencidos pelo Homem, que são subjugados pela sua força e inteligência. Mas estes animais que o herói grego domina são animais que "dá gosto" dominar, porque não são fáceis de dominar. São animais com carácter apotropaico: afastam o medo, fazem barulho. Os cães que temos em casa, que às vezes latem muito, mas não mordem nada têm um significado apotropaico: se virem ou ouvirem alguma coisa fazem barulho e assim alertam-nos e afastam quem queria aproximar-se.
Para acabar o ano em beleza (que é como quem diz, em terror), nada como falar da vida e daquilo que ainda podemos fazer enquanto estamos vivos.** Estava aqui a rever os apontamentos da aula de História da Arte e Culturas Clássicas que comparava a crescente representação humana em comparação com a decrescente representação do animal. Assim que na arte o Homem aperfeiçoa a técnica deixa de retratar animais para passar a retratar-se. É quase como se ele não se achasse digno da sua própria obra. À medida que caminhamos para o início do primeiro milénio, os gregos, por exemplo, apesar de terem pleno conhecimento do animal, preferem o ser humano. E mais ainda, à medida que o Homem percebe o seu papel no mundo, à medida que o teologia se forma e se normaliza, à medida que que normaliza a religião (no caso grego, a pagã) o Homem torna-se autor do seu destino. Esquece então a representação animal e passa para a representação antropomórfica. Os animais diminuem à medida que decresce o valor mágico deles e os artistas se movem para os grandes centros. Os animais que subsistem são os associados ao poder como as panteras, os leões e as águias, e aqueles que são vencidos pelo Homem, que são subjugados pela sua força e inteligência. Mas estes animais que o herói grego domina são animais que "dá gosto" dominar, porque não são fáceis de dominar. São animais com carácter apotropaico: afastam o medo, fazem barulho. Os cães que temos em casa, que às vezes latem muito, mas não mordem nada têm um significado apotropaico: se virem ou ouvirem alguma coisa fazem barulho e assim alertam-nos e afastam quem queria aproximar-se.
Ao representar-se o Homem descobre uma vantagem: o Homem ideial nunca é feio, deficiente, monstruoso. O Homem pode criar o que quer ver para só ver o belo e rodear-se de coisas belas. Mais uma vez tudo aquilo que foge ao cânone é afastado. Enquanto as outras civilizações fizeram representações monstruosas, mais dos deuses do que dos Homens (porque aos deuses ninguém conhece a forma definitiva, podem ser uma planta ou um animal e tudo lhes é desculpado porque eles estão acima do monstruoso), a Grécia evitou isso. Os seus deuses são perfeitos, belos, proporcionados... Estão sempre certos mesmo quando castigam os imaculados, são divinos mesmo quando se misturam com os humanos, e justos mesmo quando se vingam.Artemísia, por exemplo, é deusa protectora das florestas, da fauna e da flora. É vingativa, célere, agreste, mas nunca é representada por uma serpente ou uma leoa. Mais tarde, mais tarde sim, os deuses foram representados através de animais: Hera era uma vaca, Zeus um boi... mas antes e pelos gregos, não. Era natural que os gregos absorvessem um pouco das tradições das civilizações vizinhas, mas tal não aconteceu. Porquê é que a Grécia faz isto?
A arte grega era absoluta e completamente antropomórfica: um deus era representado com as feições de um homem, ou caso contrário seria anti-natural, seria contrário à vida. E o que é contrário à vida? A morte. A Grécia mostra, através do ritual que pratica aquando da morte, que é apenas por medo e por respeito e não por devoção que o pratica. Aliás as necropoles eram fora da cidade, tal como na Índia, em determinadas regiões o morto é colocado numa torre construída para o efeito e dado de comer às aves necrófagas. Os ossos são posteriormente esmagados e destruídos. Para além disso, os mortos eram cremados ou inumados e depois colocados fora da cidade (pólis é diferente), fora do espaço em onde os vivos estavam e fora do seu alcance visual. Quando alguém de classe elevada morria na Grécia, os homens ricos levavam a esse morto um papa igual à primeira refeição de um ser humano naquele tempo e feita de grãos de aveia bem como ramos de azinheira. Faziam essa oferta e às primeiras horas do dia barricavam-se em casa e na porta desenhavam uma cruz, um "X". Nesse dia os mortos levantavam-se do túmulo e íam de porta em porta para matar quem deles se tinha esquecido. Porque a morte é o esquecimento e os gregos sabiam disso. Mais tarde, o Cristianismo fez a mesma coisa. Lembram-se das dez pragas do Egipto? A décima era a morte dos primogénitos. Como diz no Êxodo:
E para sobreviver a isso era necessário marcar a porta com um "X", como fizeram os judeus que se barricaram em casa e marcaram a porta com um "X" feito com sangue de cordeiro:
"E tomarão do sangue, e pô-lo-ão em ambas as ombreiras, e na verga da porta, nas casas em que o comerem." (cap.12; ver. 7) e ainda
"E aquele sangue vos será por sinal nas casas em que estiverdes; vendo eu sangue, passarei por cima de vós, e não haverá entre vós praga de mortandade, quando eu ferir a terra do Egipto." (cap. 12; ver. 13).
Toda a arte funerária serve para não esquecer os outros, só serve para os perpetuarmos. Porque quem está morto já não tem rosto nem tem memória. Por isso, e só por isso - para exorcizarmos as nossas faltas, o nosso esquecimento, a forma esquecemos os mortos - é que existem as inscrições funerárias. O Saramago escreveu acerca disso e bem no livro "Todos os Nomes" (acho que foi nesse. Ai o meu esquecimento...). Lembrem-se que para os romanos o que separava o mundo dos vivos do mundo dos mortos era um rio, o rio Letes, rio do esquecimento. Quem bebesse dessas águas esquecia e só os mortos ali queriam beber. A diferença é que para os gregos não havia religião salvífica como nos querem agora vender. Para os gregos e para os romanos, a morte era definitiva enquanto para os cristãos, que acreditam na vida após a morte, esta tem remissão. Os gregos cumpriam os seus deveres para com os mortos e afastavam-nos. Os cristãos cumprem a aproximam-se pois acreditam que na morte em Deus há uma certa glória. Não se esqueçam como Eneias fez com Dido.
Tenham um Feliz Ano Novo. Há que acreditar.
*anúncio do Mars: "Um Mars por dia ajuda-o a trabalhar, descansar e divertir-se", lembram-se?
** penso muito na morte, a verdade é essa. nem sou nada dessas tretas new age.
** penso muito na morte, a verdade é essa. nem sou nada dessas tretas new age.
3 Comments:
não sei o que é pensar muito na morte
é o único "tema" e o único que temos por certo, certo!?
conhece esta?
http://www.youtube.com/watch?v=Z3P_R3XxJyw&feature=related
Caro AM:também não sei o que "muito". Todos os dias penso na minha e na daqueles que me são mais queridos. Se calhar todos os dias é muito...
vou ouvir/ver
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