- o carteiro -
Van Gogh
Fifteen sunflowers in a vase
1888
National Gallery, Londres
Corria o dia 18 de Junho do ano da graça de 2010 quando nos telefones – isto para não falar nos periódicos, nas parangonas dos jornais, das revistas, nas televisões, nas vozes estridentes e metálicas da rádio – alguém anunciava que Saramago tinha morrido. Certo e sabido que ninguém dura mais do que aquilo que pode, mesmo que tente muito, nada fazia adivinhar a morte de Saramago, isto porque se falava da preparação de um novo livro e porque, segundo os diferentes meios de comunicação social, o escritor estava “ainda nessa manhã, de boa saúde e até se tinha sentado no sofá”. Oxalá não tivesse sido o sofá a matá-lo que Deus Nosso Senhor Jesus Cristo que está em cima a desafiar a Lei da Gravidade, me perdoe.
De imediato, como seria de esperar, o mundo chorou num coro sentido, mais sentido em alguns países do que em outros. A saber: todo o Mundo excepto a sua Pátria (parte da pátria) e a Pátria de Deus; ou seja, o Vaticano. Falava-se em “Tamisas de lágrimas”, em “Amazonas de lágrimas” e como não havia rio no Vaticano, o máximo que se tinha chorado havia sido um cálice, não por Saramago, mas por todas as almas do Purgatório, pois assim obrigava o protocolo. Em abono da verdade se diga que Saramago deixou alguns órfãos no seu país e que todos eles tiveram uma palavra a dizer nos dias do velório, no dia do funeral e nos dias posteriores, incluindo este. E por muitos anos, cada um reclamará de Saramago aquilo que lhe aprouver ou não fosse o Homem feito de uma matéria especial que lhe permite distorcer os outros na medida das suas necessidades.
No cemitério o povo reunia-se em nome daquele que tinha vindo do povo, que escrevia sobre o povo, que por isso tinha sido colocado na cadeira dos imortais pela Academia, mas que o povo, essa chusma amorfa, nunca tinha lido. O povo tinha saído à rua naquele Sábado solarengo e abrigava-se entre os ciprestes e as tílias garbosas do cemitério do alto de São João, mais baratas na sua reposição de uma temperatura agradável do que as ventoinhas caseiras, os cafés onde era preciso consumir para refrescar ou mesmo os Centros Comerciais. Afastava-se o Sol com uns abanicos improvisados de uma fotocópia onde desbotava a parábola de Mateus 22. Com o boné na cabeça e com a nádega bem apertadinha encostada ao muro junto a outra nádega apertadinha, as pessoas discorriam para os microfones dos jornalistas a sua opinião acerca da morte de um português. Uns concordavam – com o quê, não se sabe -, outros nem por isso. Todos falavam de ter sido um “homem muito importante para o país”, um “grande escritor”, alguns arriscavam uma lágrima de pesar, outros empunhavam livros do autor, outros referiam a polémica com a Igreja, que nestas horas nada importava pois no fundo, o único português com coragem e premiado para dizer quão mal e deturpada estava a moral política e social do país, tinha morrido e agora nada havia a fazer que não vestir o luto e mais tarde, voltar à vidinha, à praia e à miséria.
Da direita grave e pesarosa, de azul vestida e com palavras onerosas pode dizer-se que cumpriu. Perante a comunicação social, a ferocidade da crítica, o ouvido do povo que emprenhava aos primeiros ruídos, a direita fez o que seria de esperar, porém sem brilho e sem entusiasmo. Os independentes - que assim se intitulavam por saberem não o ser – filantropos e conciliatórios, falavam já de uma homenagem. O Presidente não tinha ido: estava de férias e não pretendia interrompê-las por menos de cinco almas juntas, entre elas uma ou outra criança em idade ternurenta, quanto mais por um ímpio que tinha ousado desafiar as normas vigentes que dizem, desde tempos imemoriais, que as coisas são assim porque se fossem de outra forma estaria errado. A esquerda apelou, referiu, chorou, declamou, parafraseou, fez-se representar e fez tocar a Internacional Comunista quando o padre queria que o pano de fundo musical sobre o qual sobressairia mais o pecado humano fosse composto pelos sinos na torre a repicarem pelo arrependimento dos sacrílegos que “se seguissem aquele caminho estavam perdidos e não lhes valia São Francisco de Sales para os levar pelas ortodoxas veredas do Senhor”. Mas a Internacional prosseguia e fazia-se ouvir da sede do partido onde o orçamento para as eleições desse ano se esgotava com bandeiras, bonés e lenços com o rosto poderoso do camarada Saramago que estavam a ter sucesso entre os pseudo-leitores e os proto-comunistas. Cantos não estanques do espectro político português, tão espectral que por vezes parecia não existir, não perdoavam Saramago a ousadia de um José omisso. Outros pediam em morte aquilo que não lhe tinha sido concedido em vida e que viria a ser protelado mesmo na nova condição imaterial: o nome numa escola, o apelido numa rua, um retrato numa parede, uma placa descerrada… Coisinhas simples.
O abade responsável, não obstante ter abominado o escritor apenas pela leitura das críticas ao “Evangelho Segundo Jesus Cristo” – pois a congregação proibia-o de ir mais longe na formação literária, ele que tinha sido um prodígio na redacção de cartas num estilo que entre colegas se chamava “à Santa Teresa d’Ávila” – tinha de prosseguir com os ofícios e dar àquela alma a melhor entrada possível no reino do Senhor, se bem que isso fosse “particularmente difícil”, pensou. Se pensou não o disse e continuou a dar distraidamente os cumprimentos fúnebres e palavras de circunstância de que o hábito o havia tornado fiel conhecedor.
Mas eis que terminadas as cerimónias fúnebres com a devida elegia como mandava o liturgia, e com a porta da pequena capela onde a família chorou longe das luzes, aberta, o povo voltou ao seu pranto piano de carpideira napolitana e o féretro saiu purpúreo e triste com o seu debruadinho a ouro desmaiado a ser levantado levemente pela brisa o que a todos emocionou mais. Os vultos negros tentaram alinhar-se à volta de Saramago morto que ia a cremar. (Muita tinta para um homem agora de cinza levantou aquela cremação, um insulto num país que há muitos séculos se havia amotinado pelo impedimento despropositado do sério camponês enterrar os seus mortos dentro das capelas. O morto português queria-se enterrado, para ter onde ser chorado.) Saramago levantado em força dirigiu-se para o carro e seguiu lento - que a morte é paciente e tem tempo – para o crematório de São João. Quando tudo acabou, o povo voltou a casa: um Sábado estava passado, um Domingo também, amanhã era segunda-feira e dia de nos vermos na televisão a chorar com afinco.
Ainda a história da morte de Saramago não tinha sido explorada até ao tutano pela comunicação social, quando uma outra rompeu: onde ficariam as cinzas do escritor? Em Espanha? “Mas que raio, é tudo para Espanha, tudo para Espanha… Ficaram-nos com metade do mundo e com Olivença e querem ver que nos levam o nosso escritor? E a gente vai fazer turismo com o quê?”. Uns diziam “no Panteão” outros “na terra Natal”, outros “levai-o para o mar” e outros não diziam nada porque aquela história de cremação cheirava a macabro e a ateísmo, embora não conhecessem este último odor por esse termo. E após esta polémica que acabou como tantas outras; ou seja, esquecida pelo tempo e pelo suceder de dias e de noites, seguiu-se a polémica com as finanças, polémica essa na qual o povo não opinou por três motivos: porque nada sabia, porque ninguém lhe tinha perguntado, porque sempre que podia também fugia ao pagamento da dolorosa.
(continua...)
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