- o carteiro -
Por sugestão da Maria/Alma que me emprestou o livro, iniciei há pouco a leitura de "A Face to the World" de Laura Cumming. Visto ter encontrado alguns temas que me interessam, peço hoje licença para partilhá-los com vocês. À medida que for lendo o livro escrevo mais. No livro a autora fala em diversos auto retratos de van Eyck escondidos nos seus quadros (isto só no primeiro capítulo). À excepção do existente na Boda dos Arnolfini, não conhecia auto retratos do pintor, muito menos escondidos nas pinturas. Então vamos lá ao que interessa:
Os autoretratos na arte são muitas vezes minorizados pois uma vez que geralmente o artista retrata outra pessoa, quando faz o seu autorretrato surge sempre a tendência de achá-lo uma manifestação egocêntrica do pintor. A autora vai desbravando o caminho necessário para nos darmos conta dos referidos auto retratos, mas tal como se disse os mesmos estão escondidos e nenhuma das fontes às quais foi possível recorrer - bibliográficas ou electrónicas - mostram onde em específico no quadro.
Como sabemos é possível olhar para algo e não ver o desejado. As imagens de van Eyck, não obstante o seu preciosismo, estão muitas vezes encriptadas. É preciso olhá-las de outro ponto de vista ou semicerrar os olhos. Uma dessas imagens está, como disse, no quadro A Boda dos Arnolfini. Vejamos então onde. No espelho que pontua a parede de fundo surge reflectida, para além do casal, uma figura de azul que olha para nós. Como se trata do reflexo, a figura olha para nós da mesma forma que nós olhamos para o quadro pois estamos no lugar do pintor. Sabemos que é van Eyck pois este possui uma tela à sua frente e porque acima do espelho o pintor escreveu o seguinte: "Jan van Eyck fuit hic 1434". Isto quer dizer: Jan van Eyck esteve aqui. Nem é apanágio nas pinturas de Van Eyck este tipo de intimismo e de apropriação do quadro. O autor manifesta-se através da pintura. Claro que ele esteve ali, foi ele que pintou a tela! Isto é mais do que essa concluão: ele escreveu a inscrição pois van Eyck não pintou ali, ele esteve (e estará para sempre) ali naquele quadro, tal como os Arnolfini poderiam dizer: "nós estivemos aqui". Mais tarde vimos isto nas nossas cidades como forma de perpetuar a passagem de cada um de nós por determinado local. Nasceu nos Estados Unidos e surgiu na Segunda Guerra Mundial quando um senhor chamado James Kilroy que tinha entrado para o estaleiro de Fore River como trabalhador dias antes do ataque a Pearl Harbour e que tinha como função contar e marcar rebites. Talvez devido à sua função ele passou a deixar não uma marca pequena, mas a frase "Kilroy was here" para os funcionários que vinham depois dele. A partir daí a expressão tornou-se o fim e o meio: o fim que depois deu lugar a outras formas de arte urbana e o meio pois ajuda a marcar território.
Jan van Eyck
Portrait of Giovanni Arnolfini and his Wife
1434
National Gallery, Londres
Jan van Eyck
Portrait of Giovanni Arnolfini and his Wife (pormenor)
1434
National Gallery, Londres
Um segundo autoretrato é falado na pintura "The Madonna of Chacellor Rolin" (desculpem uns títulos estarem em inglês e outros em português). Sabe-se que estas obras eram comissionadas. Neste caso o chanceler Rolin foi quem encomendou a obra. Apesar do seu passado e origens humildes, Rolin tornou-se um dos homens fortes do rei Filipe. Na pintura vemos em pano de fundo o tratamento dado pelo pintor à cidade e se repararmos, do lado de Rolin estão os arredores da cidade e os bairros pobres enquanto do lado direito, o lado da Virgem, foram retratados os bairros ricos. Quase ao fundo, num plano que separa o mundo espiritual em primeiro plano do mundo material em segundo plano, encontram-se duas figuras em plano intermédio que fazem a transição entre esses dois mundos. Essas figuras que foram pintadas entre a Virgem e Rolin estão praticamente de costas para nós. A da esquerda está de facto de costas para o observador, enquanto a da direita se posiciona a três quartos. Estas duas personagens são importantes pois se alongarmos as linhas que formam os ladrilhos no chão, notamos que as mesmas convergem para as referidas figuras. Elas são assim o ponto de fuga da pintura. Diz-se que a figura que se encontra a três quartos, com turbante vermelho na cabeça e vestes ostentosas é Jan van Eyck. Não há nada que prove esta teoria, mas há algo na obra do pintor que pode ajudar a corroborá-la. De facto van Eyck pintou um quadro cujo título é "Man in a Turban" e o turbante deste homem é vermelho, cor que mais tarde aparece num outro autoretrato. Este retrato de um homem também é conhecido por "Portrait of a Man (self portrait). Não sei, visto não existir nenhum registo fidedigno (a National Gallery é uma fonte fidedigna, mas está no mesmo impasse, não avançando nem sim nem sopas) se o homem do turbante vermelho é Jan Eyck, mas tanto a internet como o livro consultado dizem que sim. O facto da suspeita se levantar e de poderem ser estabelecidas relações entre os quadros é já alguma coisa.
Jan van Eyck
The Virgin of Chancellor Rolin
1435
Musée du Louvre, Paris
Jan van Eyck
The Virgin of Chancellor Rolin
1435
Musée du Louvre, Paris
Jan van Eyck
Man in a Turban
1433
National Gallery, Londres
Por fim, o mais desafiante e inteligente dos autoretratos pintados por van Eyck. Confesso que demorei dois dias para descobrir este autoretrato escondido no quadro e que após todo esse tempo ainda não estou totalmente convencida. No quadro que vemos abaixo van Eyck pintou-se, supostamente a pintar o quadro. Ele teria de estar portanto de frente para o quadro e como tal, não estar nele, no quadro, como uma personagem. A menos que, tal como nos Arnolfini, existisse um espelho ou algo onde a imagem dele pudesse estar reflectida. É o que acontece: não é um espelho, mas é a armadura de São Jorge, a personagem mais à direita. O que era dito em todas as fontes consultadas - e acreditem que ainda foram algumas já que eu não gosto de perder nem a feijões - era que a figura de van Eyck estava reflectida na armadura de São Jorge, mas como podem ver, achar tal figura é um desafio e tanto. Após muito olhar e comparar as imagens que os livros reproduziam (para situar o olhar na parte da armadura onde poderia estar o reflexo do pintor) cheguei à conclusão que vos apresento. A figura assinalada dentro do rectângulo apresenta-se com um turbante vermelho, tal como o homem do suposto autoretrato. Peço-vos (vá lá, não custa nada fazer esse favor à Beluga) que aumentem a imagem e vejam, por vocês, se estou certa ou errada. Aceitam-se sugestões assinaladas via email.
Jan van Eyck
The Madonna with Canon van der Paele
1436
Groeninge Museum, Bruges
Jan van Eyck
The Madonna with Canon van der Paele (pormenor)
1436
Groeninge Museum, Bruges
4 Comments:
Fascinante o van Eyck, assim como a leitura reveladora de seus "auto retratos". É mesmo impressionante O Casal Arnolfini (impressionou a todos em sua época e continua a nos impressionar...), os pormenores de uma pintura tão rica em seus detalhes que é preciso ter uma visão quase microscópica. Na moldura do espelho cenas da vida de Cristo... O espelho numa posição convergente, que além de mostrar o artista (a convergência prossegue até encontrá-lo), revela também a visão contrária desse instante mágico.
Jan van Eyck esteve de fato lá e, como você disse, para sempre estará.
Ruas
Caro(a) Ruas, disse tudo. Volte sempre. Se eu não estiver por aqui, estou perto. Saúde
esta última é complicada... não consigo
Esforce-se, por favor. Não consegue ver mesmo uma figura com traje avermelhado? Se não é aquela mancha, onde raios poderá ser?
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