sexta-feira, maio 14, 2010

- o carteiro -
"auga fresca, binho bom e cumida à descriçom":
É um pouco estranho, para mim e dada a pequena história da minha vida, escrever este post mas, temos de nos render à evidência: a Bíblia é um guia gastronómico. Queria escrever como aqueles críticos que escrevem sobre os restaurantes que visitam: “o vinho fresco estagiava em temperatura apreciável”, mas não sou capaz. Por isso o post fica escrito no meu estilo que não é nenhum, mas pelo menos não engana. Estava a ler um livro sobre tradições gastronómicas e uma pequena parte falava da presença constante de comida e bebida na Bíblia, quer seja em sentido figurativo ou estrito. De facto as referências à comida dão-se tanto no Antigo como no Novo Testamento, em momentos mais conhecidos como a Última Ceia e o Pecado Original que inquinou para sempre a inofensiva maçã, e em outros menos falados como o episódio em que Sansão encontrou mel dentro de um leão
"E tomou-o nas suas mãos, e foi andando e comendo dele; e foi a seu pai e a sua mãe, e deu-lhes do mel, e comeram; porém não lhes deu a saber que tomara o mel do corpo do leão." (Juízes 14, 9) quando Abraão ofereceu manteiga, leite e vitela aos três homens que lhe apareceram
"E tomou manteiga e leite, e a vitela que tinha preparado, e pôs tudo diante deles, e ele estava em pé junto a eles debaixo da árvore; e comeram." (Génesis 18, 8) e na cedência da progenitura de Esaú a Jacob por um prato de lentilhas em troca
"E Jacó deu pão a Esaú e o guisado de lentilhas; e ele comeu, e bebeu, e levantou-se, e saiu. Assim desprezou Esaú a sua primogenitura." (Génesis 25, 34) só para falarmos de alguns.

Albrecht Dürer
Adam and Eve
1507
Museo del Prado, Madrid


Lucas Cranach
Samson's Fight with the Lion
1520-25
Kunstsammlungen, Weimar

Estes menos conhecidos são-no porque as maiores e grandes referências aos alimentos na Bíblia surgem no Antigo Testamento e o Catolicismo baseia-se, no seu contacto com o crente, no Novo Testamento. Logo nos Génesis somos confrontados com a questão do alimento que foi colocado à disposição dos homens por parte de Deus. Não todo o alimento, claro. Pressupõe-se que quando Deus criou Adão e Eva destinou-lhes a ingestão da comida e não a ingestão de carne, embora nada disto possa ser provado uma vez que nada está escrito antes deste episódio. Mas pensa-se que assim como os homens não deviam comer carne, os animais não comiam a carne uns dos outros.
"Tudo quanto se move, que é vivente, será para vosso mantimento; tudo vos tenho dado como a erva verde. A carne, porém, com sua vida, isto é, com seu sangue, não comerei" (Génesis 9, 3-4) Aliás, Isaías diz posteriormente:
"E morará o lobo com o cordeiro, e o leopardo com o cabrito se deitará, e o bezerro, e o filho de leão e o animal cevado andarão juntos, e um menino pequeno os guiará." (Isaías 11, 6) Isto não quer dizer que todo o animal fosse abençoado ou tido por Deus como igual. Havia animais mais iguais que outros; ou seja, animais considerados limpos e outros que eram impuros. Noé, nos Génesis já sabia que uns animais seriam para consumo do Homem e outros, mesmo criados por Deus, apenas para viver na Terra. Deus ordena a Noé que faça entrar na arca 7 pares de animais limpos e apenas 2 de animais impuros:
"De todos os animais limpos tomarás para ti sete e sete, o macho e sua fêmea; mas dos animais que não são limpos, dois, o macho e sua fêmea. Também das aves dos céus sete e sete, macho e fêmea, para conservar em vida sua espécie sobre a face de toda a terra." (Génesis 7, 2-3) Mas só no Levítico 11 (todos os versículos) e no Deuteronómio 14 (do versículo 3 ao 21) Deus diz quais são os bons e os maus.
[Como poderia Noé saber quais os puros e os impuros antes do Levítico? Ou teria o Levítico sido escrito ao mesmo tempo que os Génesis, mas por outras mãos? Por isso acho a Bíblia uma obra assíncrona…]

Giovanni Benedetto Castiglione
In Front of Noah's Ark (pormenor)
c. 1650
Gemäldegalerie, Dresden
No Levítico Deus diz que o gato, o cão, a lebre, o coelho, o cisne, o camelo, o urso, o rato, o esquilo, o cavalo, morcego, entre outros não podiam ser ingeridos por terem, entre outras coisas, as unhas fendidas e por ruminarem. Ao Homem estavam também vetadas as ostras, a lagosta, o camarão a baleia, a cobra, o sapo e esturjão de onde vem a beluga. Estes animais não podiam ser consumidos porque não tinham escamas nem barbatanas. (Por exemplo, a cobra tem escamas, mas não tem barbatanas e por isso não podia ser ingerida). Os “bons” alimentos eram a galinha, o peru, o pato, a ovelha, o pombo, o ganso, o salmão (eu bem sabia que era peixe abençoado!), a sardinha, a truta e o atum, entre outros. Obviamente com as separações religiosas, com as influências culturais e com a presença em abundância deste ou daquele alimento em detrimento de outro, o Homem particularizou por áreas culturais e geográficas a sua dieta. Por isso muitos cristãos comem ostras, camarão e lagosta (bem, se calhar não são muitos, são aqueles que podem!). Outros alimentos aparecem referenciados na Bíblia como o trigo, a cevada, azeitonas (azeite), cebola, alho, favas, lentilhas, mostarda, romã, uvas, figos, maçãs, canela, açafrão… O que se comia definia quem era saudável e quem não era. Isso acontece com Daniel que quando submetido a um exame, responde de forma mais favorável do que os eunucos do rei.
"E Daniel propôs no seu coração não se contaminar com a porção das iguarias do rei, nem com o vinho que ele bebia; portanto pediu ao chefe dos eunucos que lhe permitisse não se contaminar. "Ora, Deus fez com que Daniel achasse graça e misericórdia diante do chefe dos eunucos. E disse o chefe dos eunucos a Daniel: Tenho medo do meu senhor, o rei, que determinou a vossa comida e a vossa bebida; pois por que veria ele os vossos rostos mais tristes do que os dos outros jovens da vossa idade? Assim porias em perigo a minha cabeça para com o rei. Então disse Daniel ao despenseiro a quem o chefe dos eunucos havia constituído sobre Daniel, Hananias, Misael e Azarias: Experimenta, peço-te, os teus servos dez dias, e que se nos dêem legumes a comer, e água a beber. Então se examine diante de ti a nossa aparência, e a aparência dos jovens que comem a porção das iguarias do rei; e, conforme vires, procederás para com os teus servos. E ele consentiu isto, e os experimentou dez dias. E, ao fim dos dez dias, apareceram os seus semblantes melhores, e eles estavam mais gordos de carne do que todos os jovens que comiam das iguarias do rei." (Daniel 1, 8-15) Daniel que comia segundo as leis de Deus era saudável e quem comia outro tipo de comida ou bebia vinho não era saudável. Em Timóteo lemos que Deus criou a comida para que o Homem a partilhasse irmãmente; ou seja, para que o Homem não fosse abstinente nem parco na comida que se propunha comer ou que disponibilizava.
"Mas o Espírito expressamente diz que nos últimos tempos apostatarão alguns da fé, dando ouvidos a espíritos enganadores, e a doutrinas de demônios; Pela hipocrisia de homens que falam mentiras, tendo cauterizada a sua própria consciência; Proibindo o casamento, e ordenando a abstinência dos alimentos que Deus criou para os fiéis, e para os que conhecem a verdade, a fim de usarem deles com ações de graças; Porque toda a criatura de Deus é boa, e não há nada que rejeitar, sendo recebido com ações de graças." (1 Timóteo 4, 1-4) Assim sendo Deus inaugura a verdadeira dieta, a dieta que nem Tallon, nem Dr. Oz, nem Dr. South Beach conseguiram fazer vingar: aos homens era dado a comer de quase tudo, com moderação “moderada”.

Floris Claesz van Dijck
Still-Life
1610
Colecção Privada

Com o vinho, não era este que era condenável, mas a ingestão em demasia quando a mesma perturbasse o outro. A embriaguez era de facto algo que envergonhava o Homem, como nos mostra desde logo a embriaguez de Noé que foi usada para ilustrar a vergonha que os seus filhos sentiram quando o viram a dormir embriagado e nu. Há outros exemplos como o das filhas de Lot que embebedaram o pai e deitaram-se com ele e o de Holofernes que pretendia seduzir Judite à mesa e acabou bêbado e decapitado. No entanto era possível que o Homem bebesse vinho, desde que isso não entrasse em rota de colisão com o seu irmão. Ou seja: já que vamos fazer, vamos fazer com respeitinho!

Jan van Eyck
The Virgin of Chancellor Rolin
1435
Musée du Louvre, Paris
Quanto aos vegetarianos também a Bíblia tem uma palavra a dizer. Não há oposição bíblica relativamente às dietas que só incluem vegetais ou que apenas incluem carne; o que existe é a tentativa de conciliar dois estilos e fazê-los coexistir. Não existem pessoas mais fracas por só se alimentarem de vegetais ou mais fortes por só ingerirem carne. Os Homens são fracos ou fortes nas suas opiniões, na sua ética e na sua capacidade de tolerância. Basicamente tudo quanto era disponibilizado por Deus podia ser consumido desde que esta prática não ofendesse o outro. Uns levaram mais longe que outros estas regras. Lembremo-nos daquele post aqui no Belogue em que se falava das Blue Laws, ou as leis respeitantes ao Sábado e que foram levadas ao extremo pelo Judaísmo. Obviamente que para uma facção destas personagens bíblicas era tão importante o que o Homem ingeria (e tudo quanto estava associado a este acto) como o que ele fazia, enquanto para outros não era importante o que entrava pela boca do Homem, mas a palavra que dela saía. A presença de tantas referências à comida na Bíblia permite-nos por lado ter ideia do tipo de alimentação que naquele tempo era feita, bem como a forma como essa alimentação era processada. Mas por outro lado abre-nos portas à interpretação. Apesar de todas estas referências à comida, são parcas as referências aos sacrifícios com carne, à excepção do Sacrifício de Isaac e talvez o sacrifício do cordeiro de Páscoa. As alusões à oferenda de carne animal a Deus é restrita, embora a houvesse. Dá ideia que a Bíblia foi construída para povos civilizados! A oferta era acompanhada por algum pão misturado com azeite e por vinho ou em outras ocasiões, cerveja. Na oferta os sacerdotes que eram que beneficiava directamente do alimento (consumiam a carne em nome de Deus) deviam aceitar o que lhes era oferecido e não procurar o melhor pedaço. Samuel critica esta prática quando conta um episódio em que os sacerdotes espetam os garfos várias vezes para colherem o que melhor lhes aprouver.
"Eram, porém, os filhos de Eli filhos de Belial; não conheciam ao SENHOR. Porquanto o costume daqueles sacerdotes com o povo era que, oferecendo alguém algum sacrifício, estando-se cozendo a carne, vinha o moço do sacerdote, com um garfo de três dentes em sua mão; E enfiava-o na caldeira, ou na panela, ou no caldeirão, ou na marmita; e tudo quanto o garfo tirava, o sacerdote tomava para si; assim faziam a todo o Israel que ia ali a Siló. Também antes de queimarem a gordura vinha o moço do sacerdote, e dizia ao homem que sacrificava: Dá essa carne para assar ao sacerdote; porque não receberá de ti carne cozida, mas crua. E, dizendo-lhe o homem: Queime-se primeiro a gordura de hoje, e depois toma para ti quanto desejar a tua alma, então ele lhe dizia: Não, agora a hás de dar, e, se não, por força a tomarei. Era, pois, muito grande o pecado destes moços perante o SENHOR, porquanto os homens desprezavam a oferta do SENHOR. (1 Samuel 2, 12-17) E quando não há sacrifícios, há festas, principalmente casamentos, pois então! Ele é as bodas de Canaa onde Jesus fez jorrar dos cântaros que só tinham água, vinho, o casamento de Sansão que durou sete dias, o casamento de Jacob e Lia, o casamento de Tobias e Sara. Há pelo menos uma “festa” de baptismo - a de Jesus por parte de São João – e um aniversário; o aniversário do Faraó:
"E aconteceu ao terceiro dia, o dia do nascimento de Faraó, que fez um banquete a todos os seus servos; e levantou a cabeça do copeiro-mor, e a cabeça do padeiro-mor, no meio dos seus servos." (Génesis 40, 20) E quando não há nem uma coisa nem outra há o jejum como forma de preparação para algo. Destaca-se o jejum de Moisés quarenta dias antes de subir ao Monte Sinai:
"Quando eu subi ao monte para receber as tábuas de pedra, as tábuas da aliança que o Senhor fez convosco, permaneci no monte quarenta dias e quarenta noites, sem comer pão nem beber água." (Deuteronómio 9, 9) o jejum de Jesus quando se foi para o deserto antes de começar a pregar:
"Jejuou quarenta dias e quarenta noites. Depois, teve fome." (Mateus 4, 2) e o jejum de Paulo de Tarso quando se converteu: "onde esteve três dias sem ver, sem comer nem beber." (Actos dos Apóstolos 9, 9)
- primeira parte -

4 Comments:

Blogger alma said...

Beluga,
Sei que os judeus não comem animais invertebrados...

Sei que fico com muita sede sempre que o padre bebe do cálice...

Sei que está na hora combinar o nosso almoço/jantar ...!

14/5/10 7:43 da tarde  
Blogger AM said...

qualquer comentário meu seria uma heresia (uma heresia ou uma blasfémia)

14/5/10 11:19 da tarde  
Blogger João Barbosa said...

é melhor ficar caladinho também

18/5/10 11:55 da tarde  
Blogger Belogue said...

Cara Alma:
estou disponível e se não estiver, passo a estar.

Caro AM e Caro João Barbosa:
o que eu devia ter sido mesmo era padre... isso sim.

24/6/10 12:21 da manhã  

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