terça-feira, março 02, 2010

- o carteiro -
Sabemos que Bosch é o pintor dos escândalos da alma, que retrata como nenhum outro (excepto Caravaggio, mas em outro sentido), as minudências de que é feito o ser humano: a luxúria, a inveja, o pecado original, a podridão do corpo, as tentações… Mas quando não retrata estes temas, até nos parece que Bosch atinge alguma normalidade. Pois o que acontece… é que não. Bosch é sarcástico e perspicaz mesmo quando parece estar a fazer algo inofensivo.

Esta obra pertence a um conjunto de trabalhos precoces onde Bosch começa a aguçar o seu sentido crítico, optando no entanto por não o traduzir por monstros e criaturas grotescas. E para obra de início de carreira, Bosch teve muito trabalho, já que existem pelo menos cinco versões deste quadro. A cena é aparentemente normal como as que se passavam nas feiras da época: um conjunto de pessoas observa um mágico de rua, mas guarda em si uma crítica social pois é um aviso à crença geral de que apenas o Altíssimo tinha direito ao inexplicável. Vemos na cena uma mesa com vários objectos como uma varinha (mágica, presume-se), copos, pequenas esferas e um sapo. O segundo sapo, pelo que me parece está a sair da boca entreaberta do homem que está mais à frente. O sapo era um animal com uma simbologia simultaneamente negativa e positiva, consoante a cultura: para os egípcios era símbolo de ressurreição enquanto para os cristãos estava associado ao lixo, à lama, à heresia e ao pecado. Também se via o sapo como o animal que estava associado à alquimia. Talvez não estivesse directamente ligado à alquimia, mas a dissecação deste animal isso fizesse adivinhar.

Hieronymus Bosch
The Magician
1475-80
Musée Municipal, Saint-Germain-en-Laye

Atrás deste, um homem de lunetas e vestido com um hábito de monge puxa pela bolsa do protagonista, embora não se possa dizer se este homem é ou não cúmplice do provável mágico que preside a sessão. Como dito, existem cinco versões do quadro e existe igualmente um quadro que dá continuidade a esta cena do roubo da bolsa, o que não deixa de ser curioso porque acaba por ser aquilo que Bosch faz nos seus trípticos e porque se as várias versões revelam alguma insegurança, a continuidade mostra já estabilidade.

Mas temos de explicar o contexto da obra de Bosch. Na época a caça às bruxas tornava qualquer pessoa suspeita e mesmo aqueles que não o eram, nem suspeitos nem culpados, passavam a ser por denúncia de alguém que tentava sobreviver e assim amealhar algo graças à delação. Vivia-se em extrema promiscuidade e tudo se sabia; as cidades eram o receptáculo de todos os que tentavam a sorte: saltimbancos, mágicos, vendedores, jovens que abandonavam as suas aldeias, prostitutas, etc. É isso que o pintor mostra, embora não tenha colocado a cena dentro de uma feira, o que poderia ter distraído atenções. Assim permite-nos concentrar atenções no roubo da bolsa que é feito por uma personagem que está vestida com um hábito dominicano. No entanto, não tem a cabeça descoberta como os dominicanos e é isto que nos levanta a dúvida, já que esta espécie de turbante era típica da burguesia. A Ordem dominicana era uma das mais influentes daquele tempo e também por isso a que gerava mais polémica, pois os dominicanos estavam à cabeça da Inquisição. Por bula papal de Inocêncio VIII foi declarado que muitos homens e mulheres se haviam desviado do caminho de Deus e agora se juntavam em grupos com práticas menos próprias onde abundava o pecado da carne e a magia. Foi assim que começou a caça às bruxas com acusações a pessoas inocentes, muitas vezes para retirar atenções sobre o próprio denunciante e outras, para mostrar temor a Deus. Os dominicanos eram a polícia do Papa e da Inquisição embora, e como foi dito, a sua forma fervorosa de pregar e o conteúdo dos seus discurso fosse visto pelos habitantes dos Países Baixos (que depois se tornaram protestantes), como obsessivo e doentio. Não era uma Ordem levada muito a sério nem pelo povo nem pela justiça e daí a escolha de Bosh. Ao colocar o ladrão na posição de dominicano ele mostra que os dominicanos criavam os males de que se valia a Inquisição, dizendo por isso que de facto a bruxaria não existia – tese defendida também pelos humanistas da época – e que era uma criação dos próprios dominicanos para mostrar expediente ante o Papa.

Hieronymus Bosch
The Magician (pormenor)
1475-80
Musée Municipal, Saint-Germain-en-Laye


Como vimos, o frade puxa a bolsa de um homem com a boca aberta. Parece-nos um homem, até porque neste tipo de situações, são os homens quem se oferece para ver e ser cobaia. No entanto o suposto homem traz consigo uma chave amarrada à cintura, prática que era atribuída às mulheres e não aos homens. Aliás, segundo as regras da Inquisição as mulheres eram mais frívolas e vulneráveis que os homens e por isso estavam mais predispostas à acção do diabo. O diabo podia operar nelas transformações de compleição para atingir os seus fins. Digamos então que o homem frente à mesa e a quem é roubada a bolsa, não é um homem, mas uma mulher.

Hieronymus Bosch
The Magician (pormenor)
1475-80
Musée Municipal, Saint-Germain-en-Laye


Hieronymus Bosch
The Magician (pormenor)
1475-80
Musée Municipal, Saint-Germain-en-Laye


O mágico do outro lado da mesa não lhe toca, não toca na mulher e no entanto faz com que ela fique de boca aberta e com um sapo dentro da mesma, apenas com o olhar. Também segundo os dominicanos, o diabo conseguia influenciar as pessoas apenas com o olhar pois o seu olhar infectava o ar. O pintor introduz na personagem do mágico uma outra crítica social através do seu chapéu. Tal como vemos, o chapéu alto e negro é usado apenas pelo mágico, que diga-se, apesar da sua profissão, era um homem do povo como ou outros que ali estão retratados. Não era então um chapéu daquela classe social, mas sim da corte da Burgúndia, tendo-se mais tarde generalizado até à restante população sendo por isso usado pela burguesia abastada. Isto aconteceu no início do século XV; ou seja, era moda entre aqueles que faziam a moda, usar este tipo de chapéus. Mas como esta pintura data do final do século XV, isso quer dizer que por esta altura a moda do chapéu alto já não era apanágio dos ricos, mas apenas dos vagabundos que procuravam assim alcançar a moda e receber de volta algum respeito do povo. A crítica social presente na pintura é notória não por causa do chapéu, não porque um homem está a fazer-se passar por aquilo que não é, mas porque estabelece uma ligação com o hábito dominicano. Assim como os dominicanos introduziam o pecado e forçavam-no porque tiravam dividendos do mesmo, Bosch liga o poder político (a corte dos Habsburgo, fiel ao Papa e substituta da da Burgúndia), à corrupção pois quanto mais contribuísse para a glória papal, melhor seria a relação entre Igreja e Estado.

Hieronymus Bosch
The Magician (pormenor)
1475-80
Musée Municipal, Saint-Germain-en-Laye

O homem é de facto um mágico: de olhos pequeninos a hipnotizar a mulher, capaz de fazer o seu animal amestrado (um cão) saltar dentro do aro encostado à mesa, e possuidor de tanta inteligência quanto a coruja que traz à cintura. Há quem defenda que se trata de uma espécie de macaco e há quem diga que se trata de uma coruja e a mim parece que a segunda hipótese é a mais adequada à cena já que a coruja simboliza a inteligência e a sabedoria, mas também está conotada com a noite e com as trevas e por isso tem uma relação directa com a bruxaria. (Já desde a civilização Helénica que se pensava que as bruxas, não obstante todo o racionalismo dos gregos, tomavam a forma de corujas e de noite sugavam o sangue dos bebés. E lá estamos nós a ir para a “vampirada” outra vez. Deus nos livre e guarde!).
Hieronymus Bosch
The Magician (pormenor)
1475-80
Musée Municipal, Saint-Germain-en-Laye


Hieronymus Bosch
The Magician (pormenor)
1475-80
Musée Municipal, Saint-Germain-en-Laye

Este mágico, se não está ligado à Alquimia, uma vez que na Alquimia existem várias interpretações para o mesmo símbolo e estas podem até ser contraditórias, está pelo menos ligado à Astrologia, ou ao que deu início à Astrologia. Os planetas conhecidos foram relacionados com uma actividade e a Lua estava ligada precisamente a uma imagem como esta. Esta é que é igual à que existia, mas não deixa de ser curioso ver o mesmo tipo de mesa e os mesmos apetrechos. Aliás, esta imagem do mágico atrás da mesa a fazer os seus truques aparece igualmente numa carta de Tarot denominada “O Mago”, bem como o casal lá atrás – ele com a mão no peito dela, carta essa que se chama “Os amantes”.

3 Comments:

Blogger João Barbosa said...

direi: o tarot é posterior a Bosch.
.
continuo a gostar

2/3/10 5:27 da tarde  
Blogger AM said...

não conhecia, não tenho recordação de conhecer, este quadro
gostei muito
do quadro e da posta
este blogue é um tesouro e a beluga a sua tesoureira

3/3/10 11:58 da tarde  
Blogger Belogue said...

Caro João Barbosa:
O que eu lhe posso dizer é que por esta altura (neste século, mas talvez antes deste quadro ter sido pintado), os Visconti que governavam Milão "criaram" um Tarot deles. E antes deles, já havia Tarot, um tarot oriental ou coisa que o valha.
Mas se continua a gostar, ainda bem.

Caro AM:
eu também não conhecia o quadro. E como também não conheços as obras com que comparou a mesa do mágico no Despropósito, não posso "dizer de minha justiça". Quanto ao resto do comentário, acho que não vale a pena eu "bater mais na ceguinha".
Caramba, hoje estou a usar muitas aspas! Isto até parece o Câmara Clara em versão Redux.

7/3/10 1:06 da manhã  

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