terça-feira, março 16, 2010

- ars longa, vita brevis -
hipócrates

o antes e depois de hoje não é muito evidente, mas é bem fundamentado, valha-nos isso. O antes mostra-nos uma divindade budista, um demónio mais concretamente de nome Mâra. Este demónio tem inúmeras interpretações consoante as associações que podemos fazer com o seu nome e nem sempre, tal como acontece no Ocidente, os demónios são necessariamente maus. No geral, Mâra é o demónio que tentou Buda, tal como no Cristianismo Santo Antão foi tentado e Cristo também. No caso de Buda a tentação foi a visão de uma bela moçoila. Não que o Budismo a associe aos pecados da carne, mas sim à distracção e à preguiça; ao descuido da alma em detrimento do corpo (que não deixa de ir dar no mesmo). Mas como vimos – vimos não, eu disse – Mâra nem sempre teve esta conotação negativa pois chegou mesmo a ser apenas uma espécie de advogado do diabo e alguns diálogos mais antigos entre Mâra e Buda revelam mesmo conversas bem-humoradas. Nesta imagem (que foi cortada) vemos Mara a tentar Buda graças à multiplicidade de braços. As divindades asiáticas geralmente têm vários braços, uma imagem que pretende reforçar duas ideias. Por um lado os vários braços indicam-nos que Mâra e outros são super humanos e têm um poder que supera o nosso. Por outro mostram-nos como conseguem fazer várias actividades ao mesmo tempo. Shiva por exemplo – que é uma divindade associada à morte – consegue com os seus múltiplos braços degolar um homem, estrangular outro e incendiar uma aldeia, por exemplo.

E pensarão vocês, e muito bem, o que tem a Mara a ver com a "Nossa Senhora". Parece que nada e que a analogia formal é forçada, mas a verdade é que a arte e a mitologia oriental fez mais pelas alegorias góticas do que todos os textos bíblicos, todos os apocalipses e lendas fantásticas. Vou tentar, ao longo de alguns “antes e depois” mostrar isso, embora seja difícil conseguir as imagens. Os cristão chegaram até ao conhecimento destas imagens através de Marco Pólo e depois pelos textos de Isidoro de Sevilha. Marco Pólo descreveu as divindades da ilha Zipangri e mais tarde o relato das mesmas chegou até aos vários povos do mundo através dos viajantes. Obviamente que com deuses destes os orientais eram vistos como povos anormais que adoravam deuses anormais. Mas no Decameron Boccaccio necessita de descrever a imagem da Fortuna descreve-a como se um deus oriental se tratasse: tem cem mãos e outros tantos braços para retirar dos homens os bens terrenos e levar os humanos deste mundo. Neste caso que mostra a Fortuna num Decameron feito para Eduardo IV de Inglaterra, a Fortuna tem seis braços. Lembremo-nos que esta imagem não é a imagem da Virgem, mas sim uma ilustração de um dos contos de Boccaccio, que este utilizou para criar um novo paradigma existencial. Durante a Peste Negra vários jovens refugiam-se fora de Florença e passam os dias a contar as suas histórias. Algumas delas são histórias de vida do próprio Boccaccio e introduzem uma nova realidade: as mulheres a conviver no mesmo espaço que os homens e, ao contarem as suas experiências em ambiente fechado, a separarem o público privado, algo que até aí não existia. A Fortuna assim representada tem uma razão de ser, pois representa, ao contrário do Destino ou do Fado não é intrínseca ao homem e pode ser adquirida segundo os seus desejos. Esta ideia de que a Beleza, a Sorte e o Amor não dependem da condição com que se nasceu, mas sim da capacidade de cada um de nós para alcança-las está também na fundação de uma nova classe social, burguesa, que ascende ao poder político pela força do trabalho e não pela filiação. A Fortuna é a capacidade de cada um de se oferecer e negar bens não necessariamente materiais.

The subjugation of Mâra
Século X
Musée Guimet, Paris



Laurent du Premerfait (tradução)
Fortuna
1480