- o carteiro -
"é preciso agradar a titi":
um "must read" português é "A Relíquia" de Eça de Queirós. Bem sei que alguns acham enfadonho, com longas descrições e demasiados adjectivos, mas eu acho-o sempre actual. Não é por ser um clássico e os clássicos serem sempre actuais; é porque os sentimentos base como o amor, a inveja, a desonestidade permanecem os mesmos desde que o mundo é mundo. E Eça retrata-os sempre com muito humor e sarcasmo. Neste "A Relíquia" Teodorico, o Raposão, um órfão educado com a tia solteirona, beata e temente a Deus, tão lívida e conscienciosa como rica, é um homenzinho detestável. Com medo de perder a herança de titi e sabendo que "é preciso, é necessário agradar a titi", divide-se em desvelos religiosos, com um fervor que não sente e que professa mais por temor à sua tia e à miséria em que pode ficar caso esta não o beneficie nas partilhas do que por amor ao divino. Para agradar a titi, mostra-se comedor de missas, devorador de vias-sacras, profissional da genuflexão, do jejum e das jaculatórias a São José, habita o oratório da tia e cobre a parede do seu quarto com imagens de santos. Eça diz-nos quais são:
"Nas paredes pendurei as imagens dos santos mais excelsos, como galeria de antepassados espirituais de quem tirava o constante exemplo nas difíceis virtudes; mas não houve de resto no Céu santo, por mais obscuro, a quem eu não ofertasse um cheiroso ramalhete de padres-nossos em flor. Fui eu quem fiz conhecer à titi S. Telésforo, Santa Secundina, o beato António Estrocónio, Santa Restituta, Santa Umbelina, irmã do grão São Bernardo, e a nossa dilecta e suavíssima patrícia Santa Basilissa, que é solenizada juntamente com Santo Hipácio, nesse festivo dia de Agosto em que embarcam os círios para a Atalaia."
Eça utiliza muito a propósito a Santa Umbelina que Teodoro nunca conseguiu igualar uma vez que como homem, na sua vida se portou como um marialva envergonhado. Pelava-se por um "rabo-de-saia", esquecia as suas obrigações e perante a tia vociferava impropérios contra as mulheres e o seu sexo e a sua falta de vergonha e a sua mundanidade. Ora Santa Umbelina, irmã de São Bernardo de Claraval era exactamente esse tipo de senhora. Ela e o irmão nasceram no sei de uma família rica: o pai era Tescelin, senhor de Fontaines e a mãe Aleth de Montbard, ambos pertencentes a uma das famílias da mais alta nobreza da Burgúndia. Ao todo eram sete filhos: seis rapazes e uma rapariga, Umbelina, que a mãe mimou quanto pôde. Bernardo sofreu com a morte desta quando tinha 19. Embora tivesse abandonado o seio familiar para ingressar num mosteiro quando tinha 9 anos, porque antes mesmo de nascer foi-lhe previsto um futuro grandioso, Bernardo foi sempre influenciado pela ausência da mãe e era muito devoto de Nossa Senhora.
A mãe de Bernardo e Umbelina mimou bastante a filha pois esta era a única rapariga. Vestia-a como uma princesa no meio de seis homens e isso foi determinante para a relação que mantinha com Bernardo. Uma das razões para Bernardo ter saído de casa e se ter tornado monge, e mais tarde até um dos maiores defensores da sua Ordem (sendo um dos doutores da Igreja), foi que em jovem, quando dormia com a irmã, teve sonhos incestuosos com Umbelina. Essa é aponte como sendo uma das tentações de São Bernardo, embora seja difícil obter esta informação. Fala-se muito em virtudes e pouco nas tentações; refere-se a sua tentação de enveredar pela vida militar, mas nunca estes sonhos. Eis que um dia a irmã foi visitá-lo ao mosteiro pois já andava a pensar abandonar o tipo de vida que tinha. [Apesar de ser casada com Guy de Marcy, obteve do marido licença para se tornar freira e ingressou nas Beneditinas.] Há quem conte a história de duas formas: que ela ficou impressionada com a pobreza vivida pelo irmão e decidiu tomar o hábito; ou que ao visitá-lo, Bernardo se recusou recebê-la porque ela se apresentava com as suas roupas sem humildade tal como uma cortesã e ele temia não só o embaraço, mas cair em tentação também. Ela terá ficado indignada e triste até e decidiu... tomar o hábito. Seja como for, e só encontrei este quadro na L+Arte, referente à visita de Umbelina a São Bernardo, a inclusão dela na galeria de imagens de santos da parede de Teodorico Raposo pela parte de Eça, não terá sido casual. Talvez Raposão procurasse força para suportar a tentação de toda a população feminina, tal como São Bernardo. Mas felizmente para a história, não conseguiu.
4 Comments:
e que bonitinho é este quadro, mas não me importava de o ter... contradições
ah o Raposão. e um desfecho espectacular.
Jerusalem é pior que Braga !
eu completo dizendo "Irra, quero regalar a carne"! (a minha parte favorita é quando ele está perto do Jordão a ver uma árvore a começa a acreditar que foi daquela árvore que se fez a coroa de espinhos. já a pensar levar uma relíquia e tanto à titi, arrepende-se e pergunta à árvore se ela não era uma daquelas que curam e que ela nem ousasse ser levada para casa e dar-lhe para a tia melhorar da saúde)
é que na minha casa, "nada de relaxações", diz titi
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