quarta-feira, setembro 10, 2008

- o carteiro -

O mecenas desta pintura foi Nicolas Rolin, Chanceler da Burgúndia e Brabante. Apesar do seu passado humilde era extremamente inteligente e durante cerca de 40 anos foi o braço direito de Filipe, o Bom, bem como um dos principais arquitectos do monarca. Talvez por isso tenha tido o privilégio de ter sido pintado por Van Eyck, o pintor da corte (maior era o privilégio do pintor), em tão estimada posição: frente à Virgem Maria mais o seu Menino. Toda a pintura está então envolta num significado próprio da época, mas também muito conforme os gostos de Van Eyck que encriptava todas as suas pinturas, mesmo aquelas em que parece nada haver para encriptar. Comecemos pelo chanceler que, após algumas leituras e após ter visto este quadro achei ser semelhante à personagem do quadro de São Francisco. Imagino o chanceler a posar para Van Eyck em momentos diferentes da sua vida: em frente à Virgem quando em idade avançada (na realidade tinha cerca de 60 anos) e como São Francisco quando jovem.

Jan van Eyck
The Virgin of Chancellor Rolin
1435
Musée du Louvre, Paris


Jan van Eyck
St Francis Receiving the Stigmata
1428-29
Philadelphia Museum of Art

Um dos pormenores que poderia indicar a origem do chanceler, e que Van Eyck tão sabiamente integrou no quadro foi o cinto do chanceler, cinto que este recebeu do duque em 1424 quando foi feito cavaleiro. Do cinto que era de "seda negra guarnecida a anéis e tachas de ouro fino", como parece ser o caso observado.


Todo o quadro está repleto de significados ocultos, mas talvez o melhor seja revê-lo na totalidade: temos o chanceler a ser recebido pela Virgem com o Menino ao colo, dentro de uma estrutura arquitectónica fantasma uma vez que é fruto da imaginação do autor: é uma estrutura que associa elementos palatinos (como a arcada tripla que forma a loggia onde tudo acontece) com vitrais e colunas ricamente decoradas e que de facto podemos ver para a esquerda do chanceler. Nestas colunas, notamos que todos os capitéis estão decorados com folhas de acanto; ou seja, com as mesmas decorações pertencendo assim a uma ordem. No entanto, os três capitéis acima da cabeça do chanceler representam cenas importantes da queda da Humanidade. São elas, e não sei se conseguem ver: Adão e Eva (no capitel da esquerda, Eva está mais à direita, mesmo a fazer esquina), Caim e Abel (esta era difícil, mas nota-se duas personagens a lutar) e a embriaguez de Noé (que se procurarem na net vão encontrar representada de forma muito semelhante: um homem deitado cuja coberta é levantada pelos amigos).


Em cima da cabeça da Virgem o capitel representa David e Abisag; ou seja, a antevisão que a Bíblia Pauperum (Bíblia dos pobres repleta de imagens) fazia da coroação da Virgem. Já vimos aqui no Belogue que havia uma pintura que retratava Maria e a Sulamita, uma representava o amor a Cristo e a outra o amor carnal, uma era espírito e a outra matéria. A sulamita trazia uma coroa de flores e visto que na Bíblia não existe a tal referência explícita à coroação da Maria, pensa-se que a coroação tenha sido simbólica, com uma coroa de flores. David e Abisag representariam portanto o casamento, a união - já que a jovem foi companheira de David na sua velhice - e ao tê-la como esposa, David também a coroa. É uma alegoria à coroação da Virgem que decorre no momento da pintura.


O local onde a acção decorre, como vimos, é um pouco irreal, mas mais dúvidas levanta o país e a cidade onde a acção da acção decorre. É muito provável que Van Eyck tenha fixado bem na sua memória a cidade de Liége quando por lá passou e por isso tenha transposto para a tela alguns dos seus elementos, pois é Liége aquela que melhor retrata este cenário. No entanto o cenário é uma mistura de dois mundos: do lado do chanceler que está vivo e de boa saúde, nota-se ao fundo uma cidade "terrena"; ou seja, uma cidade com casas de habitação e ruas sinuosas e telhados e provavelmente, agitação humana. Esta parte da cidade está unida à outra parte da cidade - ou a uma outra cidade, conforme desejarmos do lado de Maria que é um ser apenas existente para os crentes - por uma ponte. E essa outra cidade é a cidade "celeste" densamente ataviada de edifícios religiosos (vemos o estilo gótico dos edifícios que se elevam em direcção aos céus). Há quem tenha visto em toda a paisagem uma recriação da Jerusalém celeste na Terra tal como a descreve o livro do Apocalipse "o seu esplendor era semelhante a uma pedra muito preciosa, a uma pedra de jaspe cristalino. Tinha uma grande e alta muralha com doze portas...". Esta descrição é contudo muito semelhante a muitas outras cidades...





Para finalizar e porque isto dava "pano para mangas", como se costuma dizer apresento mais dois exemplos das imagens simbólicas do quadro: do lado de fora da loggia e mais para a esquerda vemos dois pavões, símbolo da imortalidade, mas também da vaidade (algo que se aplica bem ao chanceler neste caso tão particular da sua vida em que tem a possibilidade de encontrar a Virgem tão pertinho). Já do lado da Virgem, mas também fora da loggia vemos um canteiro com rosas e lírios numa clara alusão às virtudes de Maria, como a pureza. Isto dava "pano para mangas", eu é que só tenho jeito para os alinhavos.


3 Comments:

Blogger João Barbosa said...

e que belos e bons alinhavos. Nois curtjimos ucê.

10/9/08 10:56 da manhã  
Blogger Belogue said...

o que me espanta é que o João Barbosa lê mesmo. pensava que o pessoal só via as imagens. oh cára, a gentji áqui fála: nois achamô ocê o máió bárato (se for essa a intenção)

11/9/08 2:12 da manhã  
Anonymous Rafael said...

realmente bons alinhavos,
belo post me ajudou MUITO
vlw

16/2/10 8:00 da tarde  

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