- o carteiro -
Cada um de nós só acredita naquilo que quer acreditar e muito me espanta que a maior parte das pessoas acredite em tudo o que está escrito nos blogs. Ou até que tomem o representado pelo representante, mas cada um, como disse acredita no que quer. Durante muito tempo, e há falta de mais informação (ou de melhor informação), acreditei que Rodin era um herói e tudo apontava nesse sentido: autor de uma das obras mais conhecidas do mundo (O beijo), de uma vida de trabalho com alguma polémica (foi preciso um requerimento – literalmente – para entrar na Academia de Belas Artes) e de uma vida amorosa igualmente agitada, estava já virado para o sucesso. Não fosse uma das amantes, Camille Claudel que foi sua aluna, sua amante e provavelmente, a autora de muitas das suas obras, ter-se manifestado. Na luta entre David e Golias, Golias ganhou e David enlouqueceu. Há algum tempo reconheceu-se que muita da produção atribuída ao Golias era da autoria de David, mas nuca se fez a respectiva penitência em homenagem à mulher “perdida em batalha”. Tarde de mais, o mundo acredita que Rodin foi um herói que para os artistas é o mesmo que dizer “foi um grande artista”. E o mundo acredita também que para se ser artista é necessária uma vida pecaminosa, ou diletante, ou ser anarquista, ou beato, ou louco, ou extravagante, ou ter um vício (álcool serve), ou uma doença, ou morrer assassinado ou morrer de velhice, sempre a produzir. O artista inverte o barómetro da categorização social uma vez que sobe na escala quanto mais anti-social e exterior aos cânones for. Foi-lhe dado, em França, a denominação de boémio, o que permite que o artista pertença à sociedade, mas se distinga na mesma sem ser no entanto discriminado. A Boémia, uma região da República Checa era pouso de ciganos nómadas e quando essa denominação chega até França e até Montmartre, serve para designar o conjunto de pessoas que tendo melhores opções, escolhe viver entre os homossexuais, as prostitutas, defende os alcoólicos, os marginais e as minorias raciais, mantendo-se como estrangeiros no seu próprio território. Defendem os outros grupos, mas não pertencem a nenhum dos outros grupos. O próprio Rodin dizia mais ou menos isto da classe a que julgava pertencer pois como diz um outro artista, os artistas denominam-se artistas, ninguém os questiona, eles não se justificam: “O artista é o confidente da Natureza. As flores iniciam diálogos com ele, vergam com graciosidade o seu pé e as tonalidades harmoniosas do seu desabrochar. Toda a flor tem uma palavra cordial que a Natureza direcciona para o artista”. Ou seja, o artista para além de viciado, doente, pervertido ou pio, é também médium. A ideia romântica do artista enquanto ser que sofre, que está permanentemente em busca de inspiração e que a mesma surge nos mais variados vícios em detrimento do trabalho, é própria do Romantismo, tendo depois sido atenuada até aos nossos dias em que o artista não é mais do que um produto. Os artistas já não são seres boémios, intermediários e intermédios na escala social: eles passam a fazer parte, quando bem cotados no mercado, da elite da indústria cultural.
Pensa-se que a vida de um artista terá influência naquilo que o mesmo faz, mas a verdade é que a vida da maior parte dos artistas é um mistério ou até uma encenação. Veja-se o caso de “Vidas” de Vasari onde o mesmo mistura factos detalhados da vida de grandes artistas do seu tempo, com pequenas curiosidades, histórias, lendas e até anedotas. Há até quem diga que Vasari era um bom contador de histórias, um bom fabulador e um criador de mitos. É por isso natural que feita esta descoberta, e feita a descoberta que os artistas retratados não são tal e qual o que Vasari dizia, se tenha tentado desfazer a ideia de que o mito e a lenda por detrás do artista sejam inseparáveis da sua obra e do entendimento que temos da mesma. A “culpa” não é de Vasari, nem apenas dos documentos, das testemunhas, dos familiares e amigos, das cartas e fotografias, mas em certa medida dos próprios artistas (alguns) que cultivaram essa persona social sem se perceber o que poderia auferir a sua obra com isso. Não é o culto de uma personalidade que serve de matéria à própria obra, como acontecia com alguns artistas dos anos 70. Neste caso, no caso que aqui falamos não há qualquer compromisso com os mitos criados, mas antes a necessidade de confrontar esses mitos com o poder per si do trabalho.
Piacbia, por exemplo, foi um homem rico. Nasceu numa família italiana e era filho de um diplomata cubano em Paris. Era mais playboy do que artista, vivia num iate sempre entre Cannes e Paris. Adorava carros de corrida bem como mulheres, que “consumia” como… carros. Não obstante esteve envolvido na criação de alguns dos movimentos artísticos mais controversos do século passado. E tudo porque Picabia se construiu baseado na ideia Nietzcheziana de que o artista niilista que pretendia ser não se justificava, nada queria comentar. Pode existir, como no caso de Picabia, uma construção da persona que combina com a construção do corpo teórico da obra. O mesmo se passa com Warhol que para além de ter sido famoso enquanto artista, mudou o sentido da fama. Para Warhol, o artista era o meio usado na sua própria arte. Não se tratava de mostrar a sua vida, mas parodiar a forma como a mesma poderia ser vista pelos outros. A vida de Warhol nem sempre foi a de estrela que lhe é atribuída. Nos primórdios da sua carreira o relacionamento com o público mainstream não esteve livre da crítica. Mais tarde, e aí sim, Warhol fez da sua vida arte e mostrou através do Time Capsules, no Studio 54 e até num episódio da série “Love Boat” (como actor).
Maurice Joyant
Untitled - Toulouse-Lautrec defecating on the beach at Le Crotoy
1898 - 1899
Van Gogh viveu sem dinheiro e doente, Gaugin abandonou a mulher e os filhos, deixou o emprego para ir pintar para o Taiti, Lautrec sofria de inúmeras doenças e partiu ambas as pernas num espaço de tempo muito curto, Degas viveu pacificamente e só no fim da vida sofreu de cegueira, Klimt foi sempre bem sucedido, Matisse trabalhou até ao fim dos seus dias, Picasso nasceu artista, e toda a vida o foi sem qualquer percalço, até Rembrandt começar a viver acima das suas posses, teve sempre trabalho, vários filhos e esposas, Signac era tão rico e conhecido que tinha Napoleão III como cliente, Vermeer só foi um pintor reconhecido no seu tempo e Hopper aos 40 anos já tinha obras suas a pertencerem ao acervo do MoMA.
Nem só de tragédia vive o artista e nem só os artistas bem sucedidos em vida fazem história. O que se pretende mostrar é que o processo de criação está alheado da condição de cada um; ou seja, o que se passa na cabeça durante a criação não está sujeito às mágoas, vícios, alegrias ou conta bancária do criador. Beyus dizia: “Everyone – each person – is an artist… The Revolution is in us”, (é verdade). Mais tarde Martin Kippenberger ajustou para: “Every artist is a person,” (o que também não deixa de ser verdade)
5 Comments:
ainda que bem habituado com a qualidade do seu belogue não deixo nunca de me espantar com a excelência de algumas postas em particular
a música seria outro campo fertil para estas suas deliciosas divagações... não era (não foi) Bach um adorável burguês?
para a sociedade, para os artistas exige-se os extremos e os excessos. c'est la vie
Caro AM:
eu sei que tenho prometido posts e tenho sempre adiado. mas fica aqui prometido e carimbado com a minha impressão digital cuspida no monitor que farei um post sobre as cariátides portuguesas e sobre a vida amena dos outros artistas.
Caro João Barbosa:
mas eles gostam que os considerem uns iluminados, que os desculpabilizem.
será, quando e se vier, muito bem vinda, mas não se sinta obrigada ou pressionada a nada que para isso já basta a vida lá fora
pára de fazer coisas assim meu!!
Obrigado pela atenção.
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