terça-feira, agosto 05, 2008

- o carteiro -

A mulher de bigode…*
Um destes dias enquanto preparava um post sobre a iconografia moldada pelas tradições locais deparei-me com o nome e imagem de uma santa que não conhecia. Era Santa Wilforte ou Santa Wilgefortis Barbuda e pregada numa cruz. No contexto em que li a informação acerca da santa, ela era tomada com uma recriação do Santo Guinefort numa época em que eram comuns as representações na cruz em “volto santo” (tradução italiana para face sagrada), representações essas que usavam invariavelmente uma túnica que podia ser confundido com um vestido. Investiguei mais: Santa Wilfort é uma santa vinda da Idade Média e como outras santas desse tempo, envolta em alguma ambiguidade de género, o seu nome tanto pode vir de facto de Santo Guinefort como da denominação latina “Virgo Fortis”; ou seja, mulher forte. Em cada país onde o seu culto é praticado adquire um nome diferente, mas todos os nomes com significado: em Espanha, França e Itália o seu nome lembra muito o epíteto “libertadora” e na Alemanha a sua denominação quer dizer “sem ansiedade”. Enquanto que o primeiro texto que li me falava de uma má interpretação relativamente à santa, li também outros que falavam de uma má interpretação em relação ao próprio Cristo pois a imagem da Santa barbuda crucificada não seria mais do que a imagem de Cristo crucificado, vestido com uma túnica em vez de coberto por uns paninhos nas partes pudibundas e que quando miniaturizada perdeu o grau de pormenor tendo sido interpretada por vários peregrinos como uma santa em vez de Cristo. Outras histórias baseiam o culto de Santa Wilforte em Portugal. Segundo a lenda Wilforte era uma jovem nobre portuguesa que havia sido prometida pelo seu pai ao Rei da Sicília. Católica como era a menina terá feio um voto de castidade e virgindade (que não é exactamente a mesma coisa) e jurou dedicar-se a Deus se este a fizesse repulsiva aos olhos de qualquer homem. Be carefull with what you wish… pois podes ficar com barba. Deus deu-lhe uma grande pilosidade facial para ela aprender. E o seu pai mandou crucificá-la tal foi a raiva com que ficou por ver a união desfeita. Por isso o nome de “libertadora” que Wilforte adquire nos países mencionados por é uma santa procurada por quem se quer ver livre de compromissos amorosos indesejados. (É aproveitar pessoal!)

Hans Burgkmair
St. Kümmernis
1531

É normalmente retratada com apenas um sapato e com um violinista aos seus pés, numa alegoria à lenda que refere que quando um violinista, um peregrino crente e devoto que por ali passava a viu começou a tocar perante o seu corpo crucificado. A santa, para o recompensar da devoção, deu-lhe um sapato seus sapatos dourados. Como era pobre e foi visto com grande riqueza, logo acusaram o peregrino de roubo. Para provar a sua inocência deram-lhe a possibilidade de voltar a tocar aos pés da santa e a sua imagem deu-lhe o outro sapato, ficando o peregrino ilibado.

Há aqui duas coisinhas curiosas: a mulher barbuda tinha de ser portuguesa. Já não bastava a fama das portuguesas do antigamente, vem agora a confirmação. A outra é que a santa não é conhecida em lugar nenhum. O seu martírio celebra-se a 20 de Julho, mas não encontrei em nenhum dicionário de santos referência a esta santa barbuda. É protectora, como referi, das mulheres que se encontram em situações amorosas indesejadas (acho que também atende senhores), e pessoas que na hora da morte a invocam para pedir uma expiração sem ansiedade. Mesmo a nível artístico apenas conheço a existência de uma gravura de Hans Burgkmair e esta parte do tríptico de Hans Memling que retrata, à esquerda a Santa Wilgefortis, com coroa, barba e uma cruz que ela segura. Está acompanhada por outra figura muito própria do Gótico tardio e que se trata de Santa Maria Egipcíaca (que eu conheço por Santa Ana Egipcíaca), uma mulher que se tornou prostituta e que foi sobrevivendo à guisa de favores sexuais que fazia aos marinheiros e apenas com três pães durante toda a sua vida!

Hans Memling
Triptych of Adriaan Reins
1480
Memlingmuseum, Sint-Janshospitaal, Bruges

Ao contrário do que se possa pensar esta era a melhor e mais adequada abordagem que a Igreja Católica conseguia fazer, à época, das mulheres santas. Parecia existir sempre uma tentativa, não para diminuí-las, mas para as dessexualizar, que é de certa forma uma tentativa de submissão. A ordem social não tinha lugar para as mulheres santas e estas tiveram de se submeter ao papel que essa mesma ordem lhes cedeu. Se formos a ver, no Deuteronómio fica interdito o acesso das mulheres a todos os hábitos religiosos dos homens e a partir do século IV a Igreja chegou mesmo a comandar milícias que tinham como função testar a vida ascética das mulheres que assim pretendiam viver, acusando-as de heresia. O Concílio de Éfeso em 431 d.C. e o Código de Teodósio em 435 decidiram pelo anátema de todas as mulheres que vestissem roupa de homem. Esta seria, segundo muitos, uma forma de transgressão da regra do pudor. Ao mostrarem-se como homens e não como mulheres as mulheres em questão estavam a ser duplamente enganadoras, falsas. Já o eram enquanto mulheres (uma tentação constante), enquanto homens queria dizer que tinham transgredido e assim apresentavam-se aos olhos dos homens, já bastante confusos como o terceiro sexo (tertium genus). Na hagiografia cristã era natural alguns eremitas transvestirem-se, mas a passagem desse ritual para santas como Santa Wilgefortis ou Joana d’Arc revela a necessidade da Igreja de nivelar as mulheres e não apelar ao seu “primeiro sexo” na iconografia.

Saint Wilgefortis
Loreta - República Checa, Praga

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