terça-feira, agosto 05, 2008

- ars longa, vita brevis -
hipócrates
antes e depois ou “caro Dosso, nunca gostei muito de si. Começou com o seu nome: Dosso lembra-me “dossel” e “cama” e Dossi lembra-me “doce”. Fiquei a pensar até que ponto você não era um dos redactores da Hustler, da parte do consultório sentimental. (“Olá, eu sou a cama doce e estou aqui para responder a todas as suas dúvidas”). E não gosto do teu trabalho, nunca gostei. Menos ainda quando percebi que o teu Baco era uma cópia escandalosa e fraquinha do Baco do Ticiano que, sejamos sinceros, é muito melhor que tu. Ouve, nem todos nós nascemos para isto. Eu por exemplo, falo de cátedra, falo porque não fui eu que fiz nada daquilo sobre o que falo, mas também não copio, é feio e nós somos pessoas gentis e boas aqui no Belogue… O do Ticiano faz parte de um conjunto de pinturas dedicadas a temas pagãos, principalmente a Baco. A sua obra é ricamente colorida e elegante em termos formais. É quase luxuosa. Também, não era para menos, ele pintava para o Duque de Ferrara. Tu não tens culpa Dosso, mas que ele pinta bem, lá isso pinta. Não, os temas também não me entusiasmam o que me chama à atenção são os pormenores, Tu bem sabes que “o diabo está nos pormenores” e eu tenho o diabo no corpo. A base da pintura de Ticiano são os textos clássicos de Ovídio que falam da relação mal sucedida de Ariadne e Teseu, ela filha do rei de Creta e ele aspirante a herói que tentou entrar e sair do labirinto sem ser sacrificado, mas só o conseguiu graças a ela e ao seu famoso fio, tendo depois deixado a rapariga na ilha quando já tinha prometido levá-la com ele e conta a forma como Baco a tomou como sua. O teu quadro… bom, já sabes, o teu quadro é inspirado no de Ticiano. Nem sequer leste os clássicos: Poética, nada; Timeu, nada; Arte de Amar, nada; Metamorfoses, nada… Se até eu li, vê lá tu! E claro, há pormenores que só uma pessoa que leu poderia ter pintado. O teu Baco sai montado numa nuvem e parece que vai irromper pintura fora sabe-se lá para onde. Ainda que seja um deus e tudo lhe seja permitido, explica-me lá onde vai o deus naqueles trajes. Explica-me também, porque é que atrás dele pintaste uma pequenina cidade. É que o Baco do Ticiano sai de um carro e vai de encontro a Ariadne, tem um propósito. Queres contar-me algo, dizer-me as tuas mágoas e porque tens esse nome? Não te inibas Dosso. Posso tratar-te carinhosamente por Dosso, não posso? (Olha, quem rima se querer é amado sem saber. Olha, outra vez!):”

Ticiano
Bacchus and Ariadne
1520-22
National Gallery, Londres


Dosso Dossi
Bacchus
c. 1524
Colecção privada