quinta-feira, novembro 01, 2007

- o carteiro -

Van Gogh
Fifteen Sunflowers in a Vase
1888
National Gallery, London

Quando a minha idade era outra que não esta, o dia de hoje não era de festa, como não o é agora. Só que nessa altura nós não percebíamos bem porquê. Sabíamos que a tarde seria passada nas redondezas, que as pessoas passeavam como pombas (elas) nos casacos de peles, bem aperaltados (eles) no fato domingueiro. Tinham o rosto sério, um certo alívio à saída, levavam flores e cores escuras, falavam baixo, pesarosos, todos eles pesarosos e muito atarefados e comprar lamparinas e velinhas sem discutir o preço com as vendedeiras. Como a tarde era passada naquilo e já fazia frio ao contrário do que acontece hoje, nós antecipávamos a recompensa prometida pela família. Era a altura em que as pessoas se reuniam tanto à volta de uma lápide em murmúrios, “com licenças” e uma lagrimazita da praxe, nada de grave, só para marcar o dia, para dizer que se chorou e que se fez um bom trabalho, como à volta de uma mesa para um aniversário ou uma Ceia de Natal. Era a altura em que todos ainda estávamos juntos, em que a ida de um ente querido não trazia mais nada a não ser saudade, lágrimas e meia dúzia de trocos no banco que mal davam para pagar o esquife, quanto mais separar gente.

As castanhas vinham embrulhadas numa folha amarela, das páginas amarelas, em forma de cartucho e segundo os meus mais próximos “de ano para ano estão mais caras”. E eram boas, muito boas. E cheiravam bem. E o fumo delas saía a misturava-se com o fumo das velas e das lamparinas e das bocas sonolentas que desde cedo andavam em peregrinação num entra e sai em vários. Eu sabia que era isto porque eu também ia a vários e de uns gostava mais que outros porque também gostava mais de uns mortos do que de outros e porque não tinha criado nenhuma relação de amizade ou cumplicidade com a lápide em questão, para estar ali a trocar intimidades. Não, havia lápides e lápides. Aquelas eram mais bonitas e até me dava melhor ali do que em outros cemitérios que me pareciam mórbidos. Aquele não: uma vez que se limpa a lápide com o muro das gavetas das ossadas a cobrirem-nos em altura e não temos de sentir o vento frio que sopra num cemitério no cimo do monte, não queremos outro cemitério. Era outro asseio.

As ciganas choravam naquelas horas de Vésperas, tudo o que nunca tinham chorado durante o ano; era uma catarse descomunal que se desenvolvia mais por osmose do que por vontade do próprio, por causa das velas e do cheiro, por causa das orações comoventes por causa do padre na capelinha com o microfone na mão, por causa da incompreensão das palavras “Alegrais-vos pois os nossos irmãos alcançaram o Reino dos Céus”. Mas aquilo não me convencia. Ia lá limpava as campas, ficava um bocadinho no silêncio dos outros dias… mas alegrar-me? Eu queria era comer castanhas e ser feliz com os que estavam vivos. E agora que a minha idade é outra que não aquela, já não quero comer castanhas, mas continuo a querer a felicidade terrena. E deixei de lavar campas.