sexta-feira, outubro 26, 2007

- o carteiro -

Gogh
Fifteen Sunflowers in a Vase

1888
National Gallery, London

Tinha à janela, com o focinho chapado do vidro, um caniche de porcelana. Todo branquinho, como devem ser os caniches e com os olhos pintados de negro e os lábios rubros como se fosse uma pega. Chegavam com as orelhas à ponta da cortina de renda grossa pois dava-me a sensação que estava mais protegida. Quem, a casa? Não, eu. Eu estava mais protegida com aquele ponto fechadinho e que exigia um grande esforço de polegares, horas de cabeça baixa e pensamentos abstraídos. Eu é que estava mais segura porque marido, estava enterrado há 3 anos e meio, cão há 4 meses (mais coisa menos coisa) no quintal, numa zona onde se acumulavam folhas que vinham da árvore da vizinha e de que eu, por uma questão de princípios nunca quis reivindicar.
O cão era o Pimenta por causa da cor do pelo e um dia fugiu-me de casa enquanto eu varria a soleira da porta e foi atropelado pelo Fiat Uno azul-escuro do meu vizinho, que é casado com a vizinha da árvore. A casa é dos dois, mas o carro é dele e por isso a culpa foi dele. Sofri muito porque não tinha sido a primeira vez que aquele abotoado das 9 às 5 que à noite chamava bebedolas à mulher e dizia “vou contar a toa a gente. Vou contar às tuas irmãs e às tua mãe. Borrachona”. Ela era, mas merecia respeito e nunca lhe ouvi a voz levantada contra aquele canastrão insensível. E foi então que me matou o Peúga, o gato que apareceu lá em casa com os olhos cheios de remela e a lamber-se todo só do cheiro da comida. E eu era frugal que a vida não estava nem está para essas coisas. Às vezes uma massinha à lavrador que dava forças, aos domingos fazia uma ¼ de quilo de lombo de porco assado só com salada por causa do colesterol e o peúga esticava a cauda à porta de casa, do lado de fora. Deixei-o entrar e como acontece com aqueles que amamos, ou nos magoam (o gato era manso), ou nós os magoamos (o que vai dar ao mesmo e eu não era mulher com idade para ofensas nem egoísmos), ou morrem. Ora se eu ainda estava aqui a contar os dias para encontrar o meu marido e o Pimenta no além, quem morreu foi o Peúga. Deu-lhe para ir urinar ao quintal do vizinho (o abotoadinho, o canastrão assassino de cães) fosse por causa de alguma ideia que o gato lá tinha fosse para mandar recados a alguma gata (se bem que eu acho que o Peúga não era gato de recados. Quando queria alguma coisa não pedia, ia buscar. Eu que o diga que fiquei por duas vezes sem postas de pescada!), a verdade é que o abotoadinho enfureceu-se e matou-me o gato. Deitou veneno num pratinho onde tinha colocado restos de comida que a santa da mulher lhe preparava (deviam vir muito temperados com vinho. Imagino que naquela casa ao lado só se comesse peras bêbadas, coelho à caçador e frango com cerveja) e o gato, claro, foi lá. Apareceu-me no quintal muito agoniado e só fui dar com ele ao fim da tarde quando não o ouvi miar para lhe encher o prato e deixar no lombo uma festinha que devia prolongar-se até ao focinho ou atrás da orelha para lhe arrancar o ronron.
É por isto tudo que lhe escrevo Sr.ª. Vereadora da Habitação da Câmara Municipal. Preciso urgentemente que me tire desta casa e me leve para um bairro social. Bem sei que há gente mais necessitada, mas moro ao lado de um assassino e temo que as próximas vítimas sejam os caniches de porcelana. Os pobrezinhos até estão lívidos por causa dessa ameaça que paira no ar.