Van Gogh
Fifteen Sunflowers in a Vase
1888
National Gallery, London
Sabes que tenho quatro filhos. Claro que sabes, a gente baptizou-os, por isso sabes. Pois bem, o meu mais velho é que descobriu e mesmo assim foi ele que me levou naquela tarde a ver o mar. Não sei se ele já sabia. Às vezes olhava-me, já eu estava aqui prostrado a tentar convencer-te a levares-me, com uma espécie de frieza cruel nos olhos. Parecia que me dizia: “morre, morre pai. Morre depressa que eu sei de tudo, e poupas-me trabalho. Se morreres não tenho de te matar”. Mal ele sabe o quanto é difícil morrer nesta casa! Pois então foi esse que me levou a ver o mar, conto-te eu para ver se tu te enfadas e me levas de vez. A Eugeninha, que é a outra a seguir a ele, comprou a cadeira, mas aquilo de me levar a ver o mar foi ele. Levava o meu primeiro neto, filho dele, agarrado à perna e empurrou a cadeira pela duna acima. O dia estava tal e qual como eu gostava para ver o mar: frio, ventoso, a levantar uma poeira miudinha que nos obrigava a semicerrar os olhos para ver a espuma branca a rematar cada onda como se fosse um bordado. Não um bordado de flores, mas um bordado inglês. Foi no final de Setembro, ele parece que escolheu de propósito. E digo-Te de propósito, porque como não sei se ele realmente sabe ou não, não posso dizer que me levou naquela época para me agradar ou para me martirizar, para me provocar um ataque qualquer. Aquela mão que empurrava a cadeira tanto podia ser a de um companheiro como a de um carrasco. Quando cheguei lá acima – não me apercebi logo -, com o vento a bater no rosto, e vi o tal bordado e ouvi o silêncio ensurdecedor do rebentamento das ondas, percebi que nunca mais teria a visão do mar como outrora. Se o meu corpo me obedecesse, juro-Te que me tinha erguido da cadeira e pelo meu pé teria voltado para trás e apanhado o 78. Não podes imaginar o quanto é penosa a visão do mar quando sabemos que nunca mais vai voltar a ser nosso. É que mesmo que ele me leve lá 20 vezes, por 20 vezes vou sentir dor e não alegria. Sabes, queria ir embora aí para cima e poder dizer: “isso? Não sei, não vi.” Percebes o que Te quero dizer? Prefiro negar-me o prazer de algo que me apraz, para na hora em que me chamares – e eu ando à espera disso há muito tempo -, não tenha nada para recordar.
Já sei que achas que ele não fez nada para me magoar, nada de forma premeditada, mas eu bem sei o calafrio que sinto na espinha quando ele vem cá e vejo passar-lhe pelos olhos uma sombra de morte. Quando vejo aquilo nos olhos dele é que me sinto vivo, porque de facto sinto alguma coisa! E não é só ele; é ele e a certeza de que ele é o depositário do meu segredo. Sim, eu sei que ele não vai contar, o que no meu caso, no nosso caso, nem é nada bom. Eu devia entrar purinho para o reino dos Céus, não era? Mas quem é que entra? O que me aborrece é que mesmo que ele não fosse meu filho, não era o tipo de pessoa a quem eu contava. Não contava a ninguém, bem sabes. Tantos anos, quase tantos como ele sem que ninguém descobrisse e de repente o tipo fica a saber metade da minha vida. Um quarto da minha vida, vá lá, que metade já ele conhecia. Por isso é que digo que foi de propósito que ele me levou a ver o mar. Foi como se dissesse: ‘anos e anos a trazer a menina para a beira-mar de carrinho, a empurrar a saia da menina para cima e hoje, meu velho senil e imundo, sou eu quem te empurra o carro de rodas. E se quisesse, empurrava-te directamente duna abaixo. Era só deixar a mão escorregar, dizer ‘oops’ e ficar a ver-te esparramado na praia a respirar areia. Fingir que corria, que me doía a perna para alegar não poder socorrer-te rapidamente e quando chegar até ti ver-te com a boca que beijava a minha mãe e que lambia o pescoço da outra no banco da frente do carro, a soltar um pozinho de areia. Nem te chorava. Pai.’ Sim, talvez esteja a ser muito severo com ele, talvez ele compreenda que um homem precisa disto. E daí… Não sei se compreende. Acho que ele nunca pulou a cerca. Pelo menos por enquanto pode pulá-la sem ser apanhado pelo filho dele de dois anos. Isso sim, isso é ter sorte!
(in "O Simétrico")
2 Comments:
em velho...
um dia vou arranjar coragem
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