segunda-feira, julho 23, 2007

- o carteiro -

Vincent Van Gogh
Fifteen Sunflowers in a Vase

1888
National Gallery, London

"Delia was a gambler"


Quando a minha idade era outra que não esta, a minha tia Adélia, a quem o meu tio por perrice chamava de Delia, tinha-me em casa sentado e entretido com o roçar de saias das visitas que lá iam beber chá e comer biscoitos. Mais comer do que beber porque a ditadura dos espartilhos assim o determinava. A minha tia Adélia não tocava nos biscoitos até chegar a sua colega de gulodice a Dona Celeste de Noronha que partilhava com ela a opinião que o espartilho era bom para receber visitas mas inútil para além disso, principalmente se como elas, eram chamadas de “mulheres na reserva”. O corpo, o marido e a sociedade não pedia filhos, a vontade não pedia amantes e os biscoitos não pediam espartilhos. Ainda estávamos longe dos Ballets Russes e da libertação do corpo feminino cujas linhas sugeridas em túnicas de bailarinas agora profissionais e senhoras dignas do respeito dado à arte, tinham inspirado o aparecimento da Arte Nova.

A tia Adélia ouvia as palavras de consolo da Dona Celeste e sorvia a ponta dos dedos onde segurava as migalhas que ía tirando do peito de rola, muito farto e redondo, como se estivesse constantemente com o cio, mas sem o toque do marido. Era por isso que o espartilho de nada servia; “devia ser multado o homem que inventou o espartilho por ser homem e por ter criado nas mulheres como elas falsas expectativas”, dizia ela. As migalhas que não via era como se não existissem porque não queria pensar no desperdício. E sacudia o peito que aos safanões com as costas da mão respondia com a imobilidade tal era a força do espartilho.

As conversas eram sobre as infidelidades do meu tio que a minha tia não tinha por um santo, mas jurava ser apenas “infidelidade” e não “infidelidades” como dizia a Dona Celeste. “Olhe que quem faz com uma faz com duas, Dona Adélia”, dizia-lhe. “Eu sou uma, a outra é duas. Ele só tem a outra. Eu bem sei que para o fim ele mal se aguentava… bem… sabe do que eu estou a falar. É só uma e é aquela Delia. Ai que raiva essa rameira ter um nome parecido ao meu. Como é que ela ousa, que atrevimento, que perfídia, que ultraje”, dizia a minha tia em crescendo, já de pé e perto da janela a pronunciar “ultraje” como uma Medeia da moral. A Dona Celeste que adorava biscoitos de canela com pedacinhos de uva passa – um luxo para a altura – aproveitava o momento para atiçar a minha tia com vista a protelar a altura de também ela sacudir as migalhas, roçar a saia nos móveis e despedir-se com a luva a acenar da porta. Dizia-lhe então medindo mais um biscoito antes de tirá-lo do prato: “e aquela música?! Hã?”

Quando o meu tio chegava a casa – eu às vezes ficava lá para jantar pois a minha tia apreciava a companhia de alguém jovem -, vinha a cantarolar sempre a mesma música: “Delia was a gambler…”, o que irritava severamente a minha tia. Era uma afronta ao seu nome, ao casamento e também, embora achasse que nada lhe servia isso, ao seu coração que continuava a bater descompassado dentro do espartilho.

Um dia, ao passearem pelo parque por alturas de um aniversário de casamento (uma das poucas ocasiões em que se mostravam em público sem ser em missas e seus derivados (para o meu tio), nem em festas e seus sucedâneos (para a minha tia), a bela mas já gasta Delia passou pelos aniversariantes lado a lado. A minha tia, segundo o que a própria contou a Dona Celeste, sentiu-se enrubescer e jurou mesmo que um dos seios lhe saltou do espartilho. Delia sorriu para o meu tio com olhos cabisbaixos e ele retribuiu com um sorriso maroto. Ia a minha tia rebentar dentro do espartilho, já pronta para dar uma descompostura de palavras educadas ao senhor seu marido quando este lhe diz: “Sabia que esta rapariga, rapariga é como quem diz, esta senhora, se assim lhe pudermos chamar, me deve dinheiro, muito dinheiro?” A minha tia estacou: “Dinheiro? Porquê? O que é que ela anda a fazer para precisar do teu dinheiro. Oh meu deus isto é pior do que aquilo que eu pensava. Nunca mais vou poder sair à rua, nunca mais vou poder estar em casa, terei de abandonar tudo…” dizia ela no seu desvario que a levava a procurar não a janela, mas o espaço entre duas árvores para arfar melhor. “Que está para aí a dizer Adélia? Ai a mulher! Adélia, aquela senhora é jogadora. Joga para se manter já que a pensão do marido entrevado não dá nem para a água da chuva. Ó Adélia, não me faça uma cena, venha para cá.”, respondeu o meu tio. Nesse momento a minha tia colocou o seio para dentro e respirou em seco, em parte por causa do espartilho, em parte por ter desacreditado o “homem bondoso, carinhoso e fogoso com quem casou”. Afinal “Delia was just a gambler” (para a minha tia), “do seu próprio corpo” (para o meu tio).

4 Comments:

Blogger AM said...

(A)Delia patroa e (a)delia empregada, mal empregada... uma louca na mesa (de jogo), uma lady na cama...

23/7/07 6:34 da tarde  
Blogger Belogue said...

"Delia was a gambler" é o nome de uma música. só não sei de quem é. Mas a ideia é essa, embora eu ache que se possa ter o dois em um.

24/7/07 10:44 da manhã  
Blogger AM said...

http://www.bobdylan.com/songs/delia.html

24/7/07 7:53 da tarde  
Blogger Belogue said...

ora aqui está um grande favor prestado à comunidade. Obrigada

24/7/07 11:49 da tarde  

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