segunda-feira, março 13, 2006

O CARTEIRO - MEDALHA DE OURO
A propósito de "Where the wild roses grow" ou "este post é inútil, porque ninguém o vai ler e disso eu tenho a certeza tão certeza como tenho a certeza que estou aqui"

Uma imagem do vídeo-clip de "Where the wild roses grow"

Existe alguma coisa em comum entre esta Kylie Minogue pré-hot pants e a Ofélia Morta de Millais. No conteúdo é diferente da de Shakespeare. Se lermos a letra da canção que Minogue interpreta com Nick Cave, vemos que esta conta a história de um casal, ele obcecado pela beleza dela. Iniciam uma espécie de relação que ela conta mesmo depois de morta e que é feita de pequenos passos de enamoramento: as flores, os beijos, até ao desferir da pedra na cabeça. A semelhança com Shakespeare é que Cave fala dela como “a mulher certa”, tal como Hamlet via Ofélia. Como manda a tradição, Minogue diz que ele seria o seu “first man”. Presume-se que em Shakespeare a nossa Ofélia dissesse o mesmo do seu amado.

John Millais
Ofélia
1851-1852
Tate Gallery, Londres


A Ofélia morta de Millais, Minogue e a “Morte da Virgem de Caravaggio são de certa forma a mesma mulher. Minogue e Ofélia são as virgens que se enamoram: Minogue é assassinada, Ofélia mata-se por não conseguir viver com a frase de Hamlet que lhe ecoa no coração o “não te amo” e a Virgem de Caravaggio aparece morta. Retratada como uma prostituta, o corpo inchado e sem dignidade de Mãe do Criador.

Caravaggio
Death of the Virgin (detalhe)
1601-603
Museu do Louvre, Paris

Em todas há denominadores comuns: a água, a imagem do corpo morto que é a última que temos, a virgindade e a pureza.
Mas ainda há outra coisa que me surpreende na letra de Nick Cave: o crescendo nas acções: primeiro olha-a e tem a certeza que aquela “is a woman to love”:
From the first day I saw her I knew she was the one,
Depois no segundo dia levou-lhe uma flor que ainda acentuava mais a beleza dela:
On the second day I brought her a flower.
Ao mesmo tempo, Minogue vai dando a sua visão dos acontecimentos: reconhece quando ele lhe trouxe a flor, mas no terceiro momento, ela fala do rio, dos beijos e da pedra, enquanto ele se refere a esse terceiro momento como se a morte nunca tivesse acontecido:
On the last day I took her where the wild roses grow
And she lay on the bank, the wind light as a thief
As I kissed her goodbye, I said, 'All beauty must die'
And lent down and planted a rose between her teeth
Há uma música da Maria Bethânia onde se verifica este crescendo. É descrita a escolha do homem consoante aquilo que ele leva à sua amada:
O primeiro me chegou como quem vem do florista
Trouxe um bicho de pelúcia, trouxe um broche de ametista
Me contou suas viagens e as vantagens que ele tinha
Me mostrou o seu relógio, me chamava de rainha(...)
O segundo me chegou como quem chega do bar
Trouxe um litro de aguardente tão amarga de tragar
Indagou o meu passado e cheirou minha comida
Vasculhou minha gaveta me chamava de perdida(...)
O terceiro me chegou como quem chega do nada
Ele não me trouxe nada também nada perguntou
Mal sei como ele se chama mas entendo o que ele quer
Se deitou na minha cama e me chama de mulher
Foi chegando sorrateiro e antes que eu dissesse não
Se instalou feito um posseiro dentro do meu coração
Conclusões:
- existe um poder libertador na água (sejam os quatro rios do paraíso, a água do baptismo os 4 rios da morte segundo a mitologia
– um dos barqueiros que levava a alma dos mortos para o Inferno era Caronte. Há pouco tempo colocaram em órbita uma sonda com esse nome. Mas o que é que esta gente tem na cabeça?)
- as virgens têm tendências suicidas
- à terceira é de vez
- “As correspondências do Mundo” será o tema da minha tese de doutoramento
O CARTEIRO - MEDALHA DE PRATA

Cães, Deus e o Demónio, ou "Como todos os Homens têm um preço"

Rembrandt
Fausto
1652-53
Rijksmuseum, Amesterdão

Antes de nascer, S. Domingos já tinha o seu destino traçado. Sua mãe, quando grávida havia sonhado com um cão segurando na boca uma tocha. S. Domingos foi para dominicano, para religioso, porque a palavra dominicanos vem de Domminicanes; Cães do Senhor (Savonarola era dominicano, mas adiante). A tocha na boca significava a luz divina que iluminava e se o cão a transportava na boca, era porque era possível confiar nele. Hoje, o cão junto a S. Domingos funciona como elemento iconográfico. Não se sabe se o cão era preto, branco, um caniche ou um galgo afegão.
Quando Ulisses chega a casa da sua Odisseia e vê o recesso de seu lar ocupado por estranhos que para além de comerem a sua comida e beberem a sua bebida, abusam das suas escravas e pretendem que Penélope termine o tapete o mais rápido possível, o primeiro a reconhecer o herói é o seu cão.Da mesma forma, quando o Romeiro do romance de Almeida Garrett "Frei Luís de Sousa" ("Quem és tu? Ninguém.") chega a sua casa após um interregno, ninguém o reconhece, a não ser... o cão.Em todos estes exemplos o cão é apresentado como símbolo de fidelidade e no caso de S. Domingos, há uma relação próxima entre o animal, aquilo que ele representa e Deus (salvo seja!). Porém, aquele que nos lambe as mãos, também pode usar as patas para nos desenterrar. Exemplos: Dr. Fausto.Não estamos a falar da "Danação de Fausto" de Goethe, ou das inúmeras adaptações musicais e literárias da verdadeira lenda de Fausto, mas sim de Henrich Cornelius Agripa (1485-1540), astrólogo, adivinho, advogado, jurista, filósofo e cabalista que nasceu perto de Colónia. Em 1509 Henrich chegou à cidade de Dole onde Margarida da Áustria era soberana. (À semelhança do que aconteceu entre Nostradamus e Catarina de Médicis. Note-se que no Fausto de Goethe a amada de Fausto tem o nome de... Margarida). Conta-se que Henrich estava sempre acompanhado de um grande cão negro onde tinha aprisionado o demónio. O cão chamava-se Monsieur. "Senhor" de Deus, ou "Senhor" de Diabo? Se tivesse aprisonado o Mal, o Bem andava à solta. Se tivesse aprisionado o Bem, era mais um S. Domingos. Foi esta história que inspirou as outras adaptações. Agora, como é que se passou de "Henrich Cornelius" para "Fausto", isso não sei. Mais tarde na versão de Goethe o Diabo revelou-se a Fausto sob a forma de um cão negro que o acompanhou até ao seu gabinete.
"Só sei o preço de um Homem" dizia uma das personagens da peça "Sobre horacios e curiacios" (de que já falamos neste blog). O de Goethe foi a sabedoria, a magia, o conhecimento total, o de Thomas Mann foi o dodecafonismo, o de José, um prato de lentilhas.
Todos os homens têm um preço.
O CARTEIRO - MEDALHA DE BRONZE

Match Point ou "A Obra de Arte Total"(II)



A Obra de Arte Total, na sua génese, mais não é que o totalitarismo estético: juntam-se diferentes formas de arte com aspectos siameses entre si, enquadradas nos mesmnos princípios e com elas faz-se um espectáculo - e não a festa (porque a festa implica o público, a sua participação e o espectáculo tem um carácter pedagógico, paternalista, quase).
Há coisas que me escapam quando vejo um filme e que só mais tarde aprrendo. Há outras que me escapam e cujo conhecimento só chega até mim por aquilo que leio; ou seja, jamais seria capaz de descobri-las por mim, ou por défice na formação ou por deformação na mesma.

Mas neste Match Point senti Woody Allen como a reencarnação do próprio Wagner, na sua obstinação em ser bestial sem ser besta. Se a Obra de Arte Total é a união de várias artes sob o mesmo signo e cujo objectivo é elevar o herói, Match Point consegue isso.

A meu ver a história resume-se a uma imagem que é a leitura de "Crime e Castigo", logo no início do filme: o nosso herói é o instrutor de ténis, um herói que começa por ser atípico, tímido, mas que se engradece nos mais pequenos pormenores (o uso do relógio de tamanho monumental é disso exemplo), mas é também o anti-herói de Crime e Castigo, aquele que erra mas sai beneficiado e curado pelo poder do amor.

Depois, e aí sim, surge a arte: a pintura na Tate, na primeira saída do instrutor e Chloe, nas vezes que o instrutor telefona a Nola, com grandes telas como pano de fundo, quando sabe da notícia da sua morte. A representação surge através das idas à ópera (que têm qualquer coisa de filme de época), no facto de Nola ser uma candidata a actriz, sempre sem concretização, sempre sem sorte (algo que marca a diferença entre esta e o instrutor pois ele aceita a promoção familiar e ela, ou por falta de talento ou por falta de ofertas não tem essa protecção). A música está presente em todos os momentos, principalmente num lindíssimo "Desdémona" (ou seria "Una furtiva lagrima"?) com que o crime é perpetrado. A literatura que marca desde o início o destino do herói ("Crime e Castigo", o livro procurado na biblioteca da casa de campo e que é o mote para o primeiro encontro com Nola, o diário que o denuncia)...

Não sei, foi só uma ideia. Este post nem será lido, mas eu achei que valia a pena uma observação mais atenta.