terça-feira, setembro 20, 2005

O CARTEIRO


Cátaros, Thomas More, Thomas Mann, Frederico Lourenço

Os Cátaros ou Albigenses eram uma seita cristã da Idade Média (século XI) considerada herética pois praticava o cristianismo maniqueísta (o mundo palpável era intrinsecamente mau e o mundo espiritual era totalmente bom), e gnóstico. Tinham, ao contrário dos cristãos, uma prática, um ritual de iniciação na vida religiosa que se dava não com o nascimento (hoje o baptismo é um sacramento administrado nos primeiros dias de vida, mas nem sempre foi assim), mas sim com a morte. Ao morrer os Cátaros recebiam o consolamentum e tornavam-se assim homens bons. Com esta conversa é fácil de ver que até à morte se consideravam homens menos puros e por isso, para alcançar essa pureza que só a morte proporcionava por inteiro tinham uma existência ascética privados de certos alimentos e tudo o que proviesse da procriação. Obviamente, dentro dessas privações estava o sexo. Só que o sexo era necessário para procriar e dar continuidade à seita. E tendo em conta isto, a promiscuidade, o aborto, a eutanásia e o suicídio eram meios perfeitamente aceitáveis para aceitar tão elevado fim. Devido à extensão da heresia cátara, a Igreja Católica procedeu ao combate da mesma. Quando a seita se extinguiu, muito se falou do Tesouro Cátaro, um tesouro que composto não de ouro, mas um tesouro místico.
O Tesouro Cátaro e a sua ausência de valor material em muito se assemelha à Utopia de Thomas More. A ilha referida por More encerra duas ideias: a de negação da propriedade privada, e a de que os interesses colectivos estão acima dos interesses privados. Em “Utopia”, More insurge-se contra o dinheiro, os bens materiais, defende (ainda que indirectamente) a eutanásia. Já no que diz respeito ao prazer, para os utopianos o prazer e a felicidade eram essenciais, mas não residiam no prejuízo dos outros, sendo até visível uma hierarquização dos prazeres: os físicos, os intelectuais e os espirituais.
Não confundir Thomas More com Thomas Mann (um provável – muito provável – candidato à presidência da nossa República fê-lo), mais um erro que faria todo o sentido. Mas Mann que escreveu “Morte em Veneza”, tinha outros interesses. Quem ler o livro e ler o seguinte parágrafo pensará que se trata de um excerto do primeiro. Mas não… O parágrafo que se segue foi escrito por Frederico Lourenço (que traduziu a “Odisseia” e a “Ilíada” – Edições Cotovia), num texto de homenagem a Eugénio de Andrade e que faz parte de um conjunto de textos de autores portugueses publicados num especial “Mil Folhas” do Público.

Carta da Grécia, ao Eugénio, por Frederico Lourenço
Sabado, 25 de Junho de 2005

O barco largou de Egina há coisa de meia hora. Ao meu lado está um jovem alemão a ler "Stilleben mit Früchten". Por acaso, já tinha reparado nele ontem, na pequena esplanada do café, sentado debaixo de uma buganvília. Fiquei na dúvida. "Stilleben mit Früchten"seria "As Mãos e os Frutos", em tradução alemã?Ontem, na esplanada no café, enquanto eu escrevinhava "poesia do quotidiano" num caderno (No pequeno café no cimo de Egina / Donde se avista o repouso do mar egeu / Fumando um cigarro, bebendo um refresco...), ele lia Eugénio de Andrade, sem saber que eu existia. Tem olhos muito azuis, como aqueles gatos persas de que o Eugénio tanto gosta.
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Rodeado por ânforas que irradiam frescura e silêncio / Com as vinhas trepando, suspensas e sombrias / O corpo vibrando dos mergulhos de há pouco / As cigarras a cantar, o ar a luzir / O declive dos pinheiros até ao mar / Sentir.
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Isso foi ontem. Hoje estamos no mar e este barco vai para Hidra: "... o lugar certo / para morrer", como o Eugénio escreve em "Rente ao Dizer". É a última etapa desta viagem, mas não conto ainda morrer. O alemão bonito acaba de pôr "Stilleben mit Früchten" no colo e está agora a olhar, deslumbrado, para o mar. Amanhã é o último dia de Setembro. Tiro da mochila "O Sal da Língua" e leio "Chega ao fim o verão, resta-me agora / a poesia a caminho da prosa". Mas o Eugénio será a primeira pessoa a compreender que não vale a pena categorizar experiências à machadada, recorrendo a palavras como "antes" e "depois".
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A simplicidade azul e branca da manhã / Diz-me que não há ontem nem amanhã / Mesmo o agora é supérfluo, é só aparente.
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Estamos quase a chegar a Hidra. A beleza deste dia é indescritível. Não houve vertigem mais serena em toda a minha vida. O alemão já meteu conversa comigo, por ter reparado que eu estava a ler o "autor dele".
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O pequeno porto de Hidra é como um / Pequeno anfiteatro para o mar / Branco, dourado e azul.
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Estamos sentados numa esplanada junto ao porto a fumar e a beber cerveja. Ele chama-se Christoph e tem vinte e seis anos (parece mais novo). Estudou italiano em Rostock, mas está com ideia de aprender português. Vou incentivá-lo, claro. Falo-lhe da poesia portuguesa. João Cabral de Melo Neto? Ele só conhece Pessoa e Eugénio. Tem o cuidado de dizer que foi a namorada que lhe ofereceu "Stilleben mit Früchten".
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Passámos limiares de maresia / E portões de rocha como ondas de lava / Tínhamos chegado a Hidra.
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A seguir ao almoço damos um passeio pela ilha. Chegamos a esta praia, onde não está ninguém, pois é o final de Setembro. Christoph despe-se e vai dar um mergulho. A água é perfeitamente transparente. Dispo-me também e entro na água.
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Pequena praia de pedras polidas pelo mar / Búzio minúsculo, faísca de sol / Rochas agrestes, muros de sombra / Água transparente, eco das ondas / Nu sem passado, oiço sem pensar.
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Apesar de a praia ter seixos em vez de areia, lembro-me de "Ostinato Rigore" e dos versos "Um corpo brilha nu para o desejo / dançar na luz a pique das areias". Agora viemos estender-nos ao sol, em cima dos sacos-cama. Christoph continua a falar da namorada.
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Procuramos alojamento na vila. Acabamos por alugar um quarto por duas noites junto ao porto, mas sem vista para o mar, pois a vista é muito cara e tanto Christoph como eu estamos na fase final das nossas respectivas viagens: o dinheiro começa já a faltar. "Os Amantes sem Dinheiro". Antes fôssemos.
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O pequeno porto de Hidra tem um sabor napoleónico / Aspecto romântico, vagamente militar / Anfiteatro caiado para o mar sarónico / Entre João Cabral e Eugénio indeciso oscilar.
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A seguir ao jantar, improviso no meu alemão atabalhoado uma tradução à primeira vista de "Cumplicidades de Verão", que também trago comigo. Parece que Christoph gosta. Já depois de nos termos deitado, depois do último cigarro, ele diz \uF8E7 assim de repente \uF8E7 que amanhã quer tomar nota da minha tradução num caderno.
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Acordo com a sensibilidade à flor da pele. Sinto o sangue a pulsar; os vasos sanguíneos em constantes fluxos e refluxos. Acordo com "As Mãos e os Frutos", mas não "nos teus braços deslumbrados". Os braços dele estão fora do lençol e "o meu corpo estremece / por vê-los nus e suados".


"Chegou o carteiro
das nove p'ras dez
a vizinha do lado
de roupão enfiado
chegou-se à janela
em bicos de pés
e logo gritou:"Traz carta p'ra mim?"
e o carteiro que é gago
espera um bocado
e responde-lhe assim:"Não não não não não
não não não trago nada
só só só só só
só trago o pacote
da sua criada"
"Chegou o carteiro" - Sérgio Godinho