segunda-feira, março 29, 2021

- o carteiro -

lava mais branco, e não é OMO

demorou mais tempo, pois tinha seguido o rumo errado neste post. tentei "açambarcar o céu com as pernas" e dei-me conta que ia ser muito difícil seguir a coerência que desejava.

os negros representados na arte eram - salvo algumas excepções - escravos, curiosidades das cortes ou malfeitores. a suposta superioridade moral da Europa originou representações dos povos africanos, asiáticos e americanos em posição de inferioridade face aos europeus brancos, inteligentes, com capacidade criativa, organizados... enfim, superiores. As representações destes povos pretendiam dizer o máximo acerca deles, mas sempre com os mesmos estereótipos: os africanos eram negros e surgiam com uma tanga, os americanos enquanto canibais com penas na cabeça, os asiáticos indolentes e com vestes sugestivas. Isto não aconteceu apenas na sequência dos Descobrimentos ou das várias colonizações das áreas "descobertas". Muito antes disso, já a Bíblia havia divulgado o seu preconceitozinho e o Catolicismo fez questão de clareá-lo. Aconteceu com a Rainha de Sabá. Ora bem, antes de tudo tenho a dizer que a identidade da moça neste versículo do Cântico dos Cânticos foi muito discutida. Além disso, a própria afirmação da suposta Rainha de Sabá é também polémica e não reúne consenso. O Cântico dos Cânticos diz o seguinte:

"Ela

Sou morena, mas formosa,
mulheres de Jerusalém,
como as tendas de Quedar,
como os tecidos de Salomão."
(Cântico dos Cânticos 1, 5)

Atribui-se a autoria do Cântico dos Cânticos ao Rei Salomão (diz a minha Bíblia dos Capuchinhos, a melhor versão em Português da Bíblia Sagrada - não sei porque é que escrevi isto em maiúsculas - No entanto, e não obstante os esforços, a Bíblia nunca poderia ser traduzida para nenhuma língua de forma totalmente fiel ao original hebraico, uma vez que em hebraico, por exemplo não se faz a distinção entre "deus" e "Deus" [entre outras coisas que ficam "lost in translation"]. O contexto e a mentalidade que presidiram à escolha dos textos que integram a bíblia não é a de hoje. nem a sua tradução. o que hoje temos é assim como água de cozido e não sopa da pedra). Nestes versículos "ela" diz que apesar de ser morena, é formosa, como se uma coisa fosse impedimento da outra. Na versão que possuo o termo utilizado é "morena", mas na Vulgata a expressão é "Nigra sum, sed formosa". Eu que não sou versada em grego acho que se aplica aqui o mesmo princípio da expressão "Dura lex, sed lex"; ou seja "A lei é dura, mas é a lei". O que isto quer dizer é que na versão antiga a mulher a quem são atribuídas estas palavras teria dito "Sou negra, mas formosa". É isto que nos interessa.

Salomão reinou em Jerusalém onde a maior parte das mulheres e homens seria morena ou de tez mais pálida se pertencessem à nobreza. Tendo Salomão cerca de 1000 mulheres na sua posse (entre esposas e concubinas), nem todas certamente de origem nobre, haveria mais morenas por aquela banda. Se esta mulher refere isto, é porque o seu tom de pele se destacava face ao das mulheres de Jerusalém. Ela poderia ser a Rainha de Sabá. Sabe-se que Sabá era uma região situada no actual Iémen ou na Etiópia. 

Segundo o Tragum Sheni, a interpretação do Midrash e até o Corão haveria uma relação de natureza amorosa entre a rainha e o rei. A bíblia é mais comedida: em 1 Reis lemos acerca do encontro entre a Rainha de Sabá e Salomão, sendo que o mesmo se ficou pelo apreço que ela sentia pela sabedoria dele, a resposta dele às questões dela e a troca de presentes. Apesar de na bíblia não existir uma referência ao relacionamento amoroso, a passagem do encontro é redigida em termos muito estranhos. Diz a mesma que quando a Rainha chegou a Jerusalém para falar com Salomão, "falou-lhe de tudo quanto trazia na ideia. Salomão respondeu-lhe a tudo; nenhuma questão foi tão enredada que o rei lhe não desse solução."

Mas voltemos à questão da cor. No Cântico dos Cânticos a mulher que fala nos versículos escolhidos diz que a sua pele é como as tendas de Quedar. Quedar é não só o nome para o hebraico "qedar", como quer dizer "escuro", "negro". Mais ainda: as tendas de Quedar eram cobertas com pele de camelo, o que vem corroborar tanto a versão do Targum Sheni como do Corão (27º Surata), ambas referindo que a rainha de Sabá tinha o corpo coberto de pêlos e seria, possivelmente, um demónio com pés de cabra. Posto isto, seria possível que a Rainha de Sabá fosse negra, formosae tivesse mantido com o rei Salomão uma relação amorosa. 
Parece que na altura a questão da Rainha ser negra não incomodou a Igreja (à excepção de, por ser negra, poder ver a sua beleza diminuida face às mulheres não negras!). Nos séculos XII e XIII, à medida que o Cristianismo se expandia e definia, a Igreja deu espaço a personagens negras, incluindo a Rainha de Sabá. 








Nicolas de Verdun
Altar de Klosterneuburg
Século XII
Áustria










Fresco etíope
Rainha de Sabá
1100-1200
Lalibela, Etiópia

Na imagem original a rainha tinha pele clara e cabelos loiros. Nesta tentativa da Igreja se aproximar dos fiéis não brancos, um anónimo pintou-a de negro. 













Conrad Kyeser
Bellifortis
1402-1405
Niedersächsische Staats, Göttingen

Outros, mais tarde (século XV), demonizaram-na:












Rei Salomão e Rainha de Sabá
Speculum Humanae Salvations
1430













Hans Vintler
Die Pluemen der Tugent
1411
Österreichische Nationalbibliothek

Aqui podemos ver a Rainha de Sabá, negra e com os cabelos negros, a adorar um demónio, juntamente com Salomão. Embora este pareça um bocado relutante... 

Ou seja, a imagem positiva da cor da Rainha de Sabá dá agora lugar a uma visão misógina, racista e negativa que faz com que se coloque na boca dela as palavras "sou negra, mas formosa". A partir daqui, e com atributos tão negativos associados às mulheres negras, a Rainha de Sabá passou a ser representada como branca, exótica, langorosa diante dos nossos olhos ou do rei, sexualizada, com carnes rubenescas (veja-se a versão do encontro entre os monarcas da autoria de Pietro Dandini, Edward Poynter, ou a representação da rainha no seu trono de Edward Slocombe).  Acho que os artistas - entre outras razões - não compreendiam como era possível ser negro e ser bonito. E vai daí fizeram da rainha negra, uma rainha branca. xeque-mate (nem sequer sei jogar xadrez...)

beijinhos às famílias, não se esqueçam de lavar as pendências e tomar a medicação antes do xixi-cama.


1 Comments:

Anonymous Anónimo said...

Bíblia: há 2000 anos a lavar a História com lixívia!

6/4/21 5:57 da tarde  

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