sábado, fevereiro 06, 2021

- o carteiro -

Foge cão que te fazem barão!
Pra onde, se me fazem visconde?

Pessoas, como vai isso? Eu estou sem livros e sem livros é muito difícil. Dou a volta à casa, como um cão que se quer deitar, mas não encontro nada. Ou já está lido, ou não é para ler. Num desses livros que não são para ler, um dos cantos da página estava dobrado (dobro o de cima ou o de baixo) para assinalar um parágrafo que falava da história de Melusina como exemplo do que alguns seres humanos fazem para ascender socialmente. As palavras de Almeida Garrett espelham o espírito de uma época em Portugal, que não era estranha ao resto do mundo. Por todo o lado se atribuiram medalhas, brasões, títulos nobiliárquicos... primeiro aos membros da nobreza, depois a uma burguesia que só tinha mordomia, mas não fidalguia e depois ainda, à medida que os títulos perdem importância e que o sangue royal se cruza com o sangue real, a tutti quanti.

Os grandes títulos nobiliárquicos que a Europa tem vieram dos soberanos da Ásia, os primeiros a designarem-se "Reis dos Reis", "Irmão Mais Novo do Sol" ou "Senhor do Universo". Também não coube aos próprios nobres atribuírem-se esses títulos, mas antes à pequena nobreza e à burguesia. Na Europa esses grandes títulos que faziam equipar o soberano a um Deus (e um médico a uma sumidade científica), não vingaram em todas as frentes pois não eram práticos. Imaginem dirigirem-se ao simples presidente da câmara desta forma: "Ao Bem-nascido, Rígido e de Elevados Princípios, Grande e Eminentemente Douto, Grande e Eminentemente Sensato, Presidente da Câmara de... Castanheira de Pera"... Mas como quanto mais sapateiro, mais acima da chinela se sobe, livreiros, alfaiates, cabeleireiros, joalheiros e estudantes não abdicavam do seu titulozinho. E quando não era possível justificar estes títulos com uma árvore genealógica à medida (a nobreza podia sempre dizer que provinha de Carlos Magno, mais coisa menos coisa, mas e a pequena nobreza e a burguesia?), utilizava-se a imaginação. Algumas casas "menores" adaptavam o nome. Assim os Lévis de França passaram a provir da tribo de Levi e por isso, primos da Virgem Maria. Quando saíam para a Igreja gritavam ao cocheiro: "depressa, vou visitar a minha prima!". Outras casas não perdiam tempo e eram logo parentes de Adão e Eva. Outras ainda eram parentes de seres imaginários, como é o caso da Casa de Lusignan, casa real de origem francesa (de Poitou) que teve poder sobre os reinos da Arménia, Jerusalém, Chipre, etc... Segundo a estória (ou a história, não sei bem) contada por Jean d'Arras e por Coudrette, esta casa real fez o seu momento fundador radicar no encontro entre o conde de Lusignan, de seu nome Raimundo e a sereia Melusina, do qual descendem, em última análise, todos os Lusignans. A origem de Melusina não é medieval. Terá vindo de Lucina, deusa romana que ajudava as parturientes a dar à luz (Lucina vem de lux, luz). Porque esta Lucina já existia na antiga religião romana e não foi por isso uma adaptação dos deuses gregos ao panteão romano, transitou para o Cristianismo como Mater Lucina e, em França, com Mère Lucine que terá originado Melusine. Este Mère Lucine poderá ser também uma alusão ao seu papel fundador dos Lusignan, já que pode ter sido adaptado para Mère Lusigne, "Mãe dos Lusignan". 

A história de Melusina é simples: filha da fada Présine e de Elinas, rei da Escócia, sequestrou o pai numa montanha por este ter quebrado o acordo feito com a mãe aquando do seu parto. A fada Présine havia pedido ao rei Elinas que nunca a visse durante o parto. Quando Melusine nasceu o Rei esqueceu a sua promessa e por causa disso Présine teve de se refugiar na ilha de Avalon. Quando cresceu, Melusina e as suas duas irmãs quiseram dar castigo semelhante ao pai, mas foram repreendidas pela mãe que sobre Melusina lançou o seguinte feitiço: todos os Sábados Melusina transformava-se numa serpente, da cintura para baixo, vaguearia sozinha, sem alguém que a amasse tal como era. Mas de Domingo a Sexta Melusina fazia a sua vida e foi num destes dias que conheceu Raimundo, conde de Lusignan. Boy meets girl e coisa e tal, casaram, tiveram 10 filhos, mas ela fê-lo jurar que nunca a veria aos Sábados. Estava tudo a correr bem até ao dia em que o primo de Raimundo, o conde de Forez, o aconselhou a averiguar o que se passava com Melusina. Raimundo espreitou pela porta da câmara onde Melusina se fechava aos Sábados e viu a sua mulher a tomar banho, agitando a cauda na água como uma serpente ou uma sereia. Segundo Jean d'Arras, que escreveu em 1393 "Melusine ou La Noble Historie de Lusignan", Melusina teria perdoado este deslize a Raimundo, mas ele, sentindo-se a vítima da história e não o culpado, aproveitou um momento trágico ocorrido no seio familiar (a morte de um dos filhos às mãos de outro filho), denunciou publicamente Melusina pela natureza monstruosa do assassino (e dos restantes filhos, diga-se... um deles tinha um olho verde e outro vermelho e uma orelhas gigantescas; outro tinha um olho mais acima que o outro; outro nasceu com um dente de 2,5cm...). Repudiando-a como esposa, cumpriu o anátema lançado por Présine. Aqui a história adquire duas versões: a francesa de Jean d'Arras diz que Melusina tinha, para além de cauda de serpente, asas de dragão e por isso voava sobre o castelo dos Lusignan para predizer, com gritos terríveis, a morte de cada conde da família, enquanto na versão germânica ela voa sobre o castelo, mas com uma aparência híbrida entre humano e monstro. Quanto aos gritos, fazem sentido já que Melusina, ou Mère Lusine, ajudava aos partos. Ainda hoje em França se chama a um grito desesperado e súbito, um "cri de Mélusine". 













Irmãos Limbourg
Les très riches heures du Duc de Berry: Mars (March)
1412-16
Musée Condé, Chantilly













Gheraert Leeu
Melusine
1491
Koninklijke Bibliotheek Bélgica

A versão da história de Melusina composta por Jean d'Arras teve o patrocínio de João, Duque de Berry, o terceiro filho do rei João II da França e governante de uma zona de fronteira nas guerras com a coroa inglesa. João II fez do seu filho conde de Poitou, mas este teve que ceder o condado aos ingleses após a batalha de Poitiers (1356). João II deu-lhe então o ducado vizinho de Berry como recompensa, apesar do filho ter conseguido retomar o condado de Poitou na década de 1370. Pensa-se que o objetivo do romance de Jean d'Arras era legitimar o poder do Duque de Berry sobre Poitou e sobre os Lusignan. A história não conta apenas como Melusina fundou a dinastia Lusignan, mas apresenta também, implicitamente, João de Berry como seu descendente e, portanto, o legítimo sucessor dos condes de Lusignan. Não foi o único a reclamar descender de Melusina; a casa real de Sassenaye, do Luxemburgo ou de Rohan, e até os plantagenetas que haviam perdido Poitou reclamavam esse direito. Parece-me no entanto que os Lusignans e os descendentes do Duque de Berry foram os únicos a colocar Melusina no seu brasão. Não encontrei Melusina no brasão do Duque de Berry. Também não encontrei nenhuma imagem do brasão dos Lusignan dos tempos medievais em que, supostamente, era possível ver sobre a coroa, uma sereia numa banheira, a olhar-se ao espelho e a pentear o cabelo. Mas encontrei um brasão no Château de Xantrailles, França, que no século XVIII passou, por casamento, para Lau de Lusignan:










Encontrei novamente Melusina na lombada de um livro de Louis- Henri Loménie, conde de Brienne, um nobre francês de Limosin que, no século XVII, ligou a  história da sua família à história dos Lusignan e por isso, a uma fada da qual todos descendem. Porque é que ele fez isso? Por uma questão de poder. Dizia-se que a famosa e poderosa família Lusignan era de Limosin, a mesma área da qual os condes de Brienne alegavam descender. Além disso, Louis-Henri provavelmente tinha em mente a alegação de que os condes do Luxemburgo eram também descendentes de Melusina, já que sua mãe era da Casa de Luxemburgo: Louise de Béon-Luxembourg, era uma das descendentes de Carlos, o vigésimo quinto conde de Brienne, e era, além disso, uma das herdeiras da Casa de Luxemburgo. As duas vacas, vistas aqui no primeiro e no quarto "quadrados" do brasão, representam a Casa de Béon, enquanto os leões coroados representam a Casa do Luxemburgo. Ao incluir os elementos de Luxemburgo no seu brasão e, além disso, adicionar a misteriosa fada Melusina, Loménie procurou subir na escala de poder da corte francesa. 











E encontrei Melusina no brasão da Casa de Rochefoucauld que foi fundada pelo filho do primeiro conde de Lusignan, também ele um Lusignan, claro está!



No fundo Melusina replica outras tantas histórias da mitologia, da bíblia ou do imaginário colectivo. Replica a história da sua mãe; de Urvashi e Pururavas (lenda védica em que Urvashi - divina - se uniu a Pururavas - mortal - na condição que este nunca a visse nua); a história de Adão e Eva (ele quebra a promessa que feita a Deus e ela fica com aspecto de serpente), a história de Toyotama-hime, filha do deus do mar na mitologia japonesa, casada com o príncipe Hoori, que quebrou a promessa que lhe fez de não a ver a dar à luz; a história de Afrodite que viu o seu caso de amor com o mortal Anquises ser revelado por este; a história de Lohengrin que parte num barco puxado por um cisne em resgate de uma donzela ameaçada por um dragão sendo que esta não podia perguntar o seu nome; a história da filha de Hipócrates que se viu transformada em dragão pela deusa Diana e cujo feitiço só podia ser quebrado três dias no ano, quando, com a forma humana, solicitava a um cavaleiro que a beijasse quebrando assim o feitiço...

enfim. coisas...