quarta-feira, janeiro 27, 2021

- o carteiro -


estava a ler o "do desaparecimento dos rituais" e deparei-me com estas frases: "A sociedade do século XVIII ainda é determinada por formas rituais de interacção. O espaço público assemelha-se a um palco, a um teatro. Também o corpo representa um palco. É um manequim sem alma, sem psicologia, que dá prazer engalanar, adornar, ataviar de signos e símbolos". (Byung-Chul Han, Do desaparecimento dos rituais. Lisboa: Relógio d'Água, 2020, p.27). É verdade que já falei aqui, mais do que uma vez, sobre a moda e beleza do século XVIII (aqui e aqui). Tanto numa publicação como na outra escrevi - creio - acerca das mouches; ou seja, aqueles sinais falsos que tanto os homens como as mulheres do século XVIII aplicavam no rosto e no colo. Na altura havia coisas que não sabia e que hoje partilho com vocês.  

ora bem, tal como refere o autor do livro, o corpo de século XVIII é para ataviar, adornar. A pele queria-se clara (muitas vezes os métodos usados para tal eram mortíferos ou provocavam problemas de pele sérios) para distinguir a classe alta da classe mais desfavorecida cuja tez era morena por trabalhar ao Sol, na agricultura ou na pecuária. Mas os sinais - que faziam parte de um conjunto mais vasto de truques de beleza - tinham códigos, tinham regras de aplicação. Ou, para corroborar o que diz o autor, a sua aplicação obedecia a rituais. Comecemos por desmistificar a ideia que as mouches ("mosca" em francês) eram aplicadas somente por razões de beleza. Elas podiam ser de qualquer forma e tamanho e eram utilizadas para esconder cicatrizes de combate (o que apenas realçava o carácter de quem as tinha) ou para esconder cicatrizes causadas pela sífilis, para além das questões de beleza, claro está. No primeiro exemplo, vemos um oficial inglês a usar uma mouche junto ao olho, onde havia sido ferido em batalha. No segundo vemos a proprietária de um bordel a receber uma jovem candidata a prostituta. A proprietária do bordel tem o rosto sarapintado de mouches que não são casuais (hogarth nunca faz nada por acaso): estas mouches servem para esconder as marcas da sífilis que, por ser uma doença sexualmente transmissível, era conotada com comportamentos promíscuos e, por consequência, com a prostituição. 

Sir Joshua Reynolds
Charles, 9th Lord Cathcart
1753-1755
Manchester Art Gallery



William Hogarth
A Harlot's Progress
1822

Esta moda das mouches chegou às mulheres e homens que não tinham imperfeições de pele, não só porque os sinais negros (feitos com tecido e colados por vezes com banha e saliva) salientavam a alvura da sua tez, mas também por imitação de uma personagem mitológica: Vénus. Vénus era a deusa mais bela da teogonia. Não deveria por isso ter qualquer defeito físico, presume-se. No entanto, e como deusa do amor, era natural que ficasse com as "marcas do amor"; marcas de doenças venéreas. Aliás, a palavra "venérea" vem do latim "venereus", que por sua vez vem de "venus" e de "amor sexual". Alguns autores mais antigos dizem que Vénus teria uma verruga que cobria com uma destas mouches e que essa verruga só tornava ainda mais evidente a sua beleza (!). É por isso natural ver as mulheres do século XVIII usarem estas mouches, com formas várias como podemos ver abaixo:








Século XVIII
Wellcome Library, Londres

O século XVIII era feito de rituais: no vestir, no lazer, no diálogo mais ou menos formal. Foi também marcado por uma certa promiscuidade. Digamos antes, liberdade. Os jovens que faziam a sua viagem iniciática pelas coisas da arte, lidavam diariamente com os mármores de mulheres e homens nus da Antiguidade Clássica. Com a Revolução Francesa - que já se andava a preparar pelo menos em teoria - esta noção de que o sexo é um assunto privado e que não pode ser regulado pela Igreja, começou a tomar forma. Por essa razão, os jogos de sedução ritualizados eram uma constante, principalmente entre os membros da nobreza. Como as relações pessoais eram ditadas por códigos estritos, criaram-se novas formas de comunicar. As mouches eram uma delas. Veja-se abaixo a informação acerca do seu estado de espírito, das suas preferências nas coisas do amor e do seu estado civil, que o rosto de uma mulher podia conter através das mouches:















Maria Gabrielle Capet
Self-Portrait (pormenor)
1783
The National Museum of Western Art, Tóquio


Tal como as mouches animavam o palco que era o rosto, também os penteados coloriam as personagens do século XVIII. Mas enquanto as mouches nos diziam algo de quem as usava (o seu estado civil, o seu carácter), os penteados eram uma afirmação política. Tudo começa com Rose Bertin, uma jovem que aos 23 anos já possuía em Paris uma loja de moda de nome Le Grand Mogol. Era o que hoje classificaríamos de criadora de moda. Teve como clientes nomes como Madame de Pompadour, Madame du Barry e, a mais conhecida e para quem criou em exclusivo, Marie Antoinette. A especialidade de Rose Bertin era, no entanto, os penteados. A ela devemos o "Quès aco" que, penso, está na base de todos os poufs seguintes.

Rose Bertin e Léonard Autié, cabeleireiro da rainha, criaram para Marie Antoinette e para os seus seguidores, penteados que refletem momentos históricos ou sentimentos, embora estes não reflictam estados de alma. O século XVIII era um jogo e tudo a que a ele se referia, era por consequência lúdico. O primeiro, e posterior ao "Qués aco", foi o "pouf aux sentiments", por volta de 1774. "pouf" porque o cabelo era ripado no interior para ficar com volume, volume esse que também se obtia com a colocação de pequenas almofadas ou gaze dentro daquele "ninho de ratos". Aliás, como após a criação de volume ainda se colocavam pomadas e pó de talco e as senhoras dormiam e viviam durante alguns dias com o cabelo daquela forma, era natural que alguns vermes e parasitas se aproximassem das cabeleiras. Daí a expressão "ninhos de ratos" se aplicar na perfeição aos cabelos do século XVIII. "aux sentiments" pois era suposto que os cabelos fossem ornamentados com objectos pessoais da sua dona, ou de quem ela queria homenagear. Poderiam ser canários, relíquias de famílias, pequenos retratos pintados dos filhos... 













Louis XVI, l'homme qui ne voulait pas être roi
2011
Raphaelle Agougé no papel de Marie Antoinette

O "pouf à Iphigénie" surgiu pouco após a estreia, em Paris, da tragédia "Iphigénie en Tauride" de Gluck em 1774. Marie Antoinette - como trendsetter que era - acolheu bem a ópera do seu compositor favorito. Ao aclamá-la reivindicou o seu próprio talento para crítica musical. Este pouf estava muito ligado ao falecimento de Luís XV já que era composto - entre outras coisas - por um véu negro encimado por uma lua crescente. Aliás, o chapéu à Iphigénie criado por Rose Bertin tinha esses mesmos elementos, para além das flores negras.

O "pouf à la circonstance" surgiu depois de 1774, ano em que faleceu Luís XV, e como forma de homenagear o novo rei, Luís XVI. Era complexo e "composto por um cipreste alto, ornamentado com malmequeres pretos, sendo as raízes representadas por um pedaço de crepe; no lado direito era colocado um grande feixe de trigo, encostado a uma cornucópia da qual espreitavam uvas, melões, figos, e outras frutas, lindamente reproduzidos; plumas brancas eram misturadas com as frutas" (Solomon Rappoport, Angelo, Rose Bertin, the creator of fashion at the court of Marie-Antoinette, Nova Iorque: Charles Scribner's Sons, 1913, p. 35). Não me atrevo a deixar-vos uma imagem deste tipo de pouf pois não quero induzir-vos em erro, nem quero errar. A verdade é que não encontrei nenhuma imagem que me faça acreditar estar perante um "pouf à la circonstance". Como os tipos de pouf eram tantos e com diferenças muito pequenas entre si, poderia publicar uma imagem que não correspondesse ao verdadeiro pouf. No entanto, e para já, estes poufs só fazem sentido na corte francesa, já que dizem respeito a acontecimentos dessa corte.

Também o "pouf à la inoculation" diz respeito a um momento real: a inoculação da vacina contra a varíola por parte do rei Luís XVI. Sim, a vacina contra a varíola só surgiu mais tarde, mas já antes circulavam versões da vacina (injectar pequenas porções de pus da varíola na pele de um paciente saudável para criar anticorpos) que o rei tomou como forma de tranquilizar os súbditos - e evitar morrer da mesma doença que matou o seu antecessor. A esposa, Marie Antoinette, resolveu homenageá-lo, usando o "pouf à la inoculation" criado por Rose e Léonard. Este penteado caracterizava-se pelos acessórios: a serpente de Esculápio (a simbolizar a medicina), um sol nascente (a simbolizar o jovem rei) e um ramo de oliveira (a simbolizar o triunfo da ciência sobre a doença).

O "pouf à la Belle-Poule" criou um pequeno escândalo. Tal como os outros, era construído com almofadas, enchimento com gaze e cabelos falsos, modelado e puxados com pomadas e assim mantido graças a paciência, cuidado com os movimentos, e ganchos... O que distingue este pouf dos outros é a sua decoração. Na altura a França combatia ao lado da América contra os colonos ingleses. Em 1778 a fragata francesa Belle-Poule enfrentou a fragata inglesa Arethusa. Ganharam os franceses e a rainha, em homenagem a esta victória, engalanou o seu pouf com a réplica de uma fragata:




 







Marie Antoinette
2006
Kristen Dunst no papel de Marie Antoinette

O "pouf à la jardinière" também teve adeptas. Como o nome indica, é um pouf onde, para além das flores, encontramos os frutos e os vegetais como cenouras, beterrabas, espigas de trigo, etc. Não sei se isto se prende com um simples devaneio dos criadores ou se já anuncia uma tendência melancólica da rainha. De facto a vida em Versailhes poderia ser muito aborrecida: nada para fazer a não ser ver tecidos, preparar indumentárias, fazer jogos de sociedade... Havia mais felicidade na camponesa ali ao lado do que entre as texturas suaves, peles macias e ambientes protegidos. Ao mesmo tempo a rainha foi percebendo que graças aos poufs o seu cabelo estava a ficar mais fraco e deixou mesmo de usá-los, adoptando um estilo semi camponês. Talvez tenha sido nesse "regresso" ao natural que se criou o "pouf à la jardinière", aqui caricaturizado:













Matthew Darly
The Green Stall
1777

Podemos dizer que estes são os principais poufs e que, depois destes, houve um tempo em que o que mudava era a altura do cabelo, a colocação da decoração (principalmente penas de avestruz e de garça) e a denominação dos poufs. Deixo aqui alguns exemplos encontrados no site do Museum of Fine Arts, Boston, que possui ilustrações da Galerie des Modes et Costumes Français, uma publicação distribuída em França entre 1778 e 1787 e que, no fundo, ditava as modas. 

à ouriço












Gallerie des Modes et Costumes Français. 15e. Cahier des Costumes Français, 9e Suite d'Habillemens à la mode en 1778. P.90 "Jeune Dame coeffée au Hérisson avec deux boucles ..."
Designed by Claude-Louis Desrais, Engraver C. LeRoy, Publisher Esnauts et Rapilly
1778

à la reine













Gallerie des Modes et Costumes Français. 2e. Cahier des Nouveaux Costumes Français pour les Coeffures. B.7 (duplicate) "Nouvelle Coeffure en plumes..."
By Esnauts et Rapilly
1778

croissant













Gallerie des Modes et Costumes Français. 2e. Cahier des Nouveaux Costumes Français pour les Coeffures. B.12 "Pouf d'un gout nouveau..."
By Esnauts et Rapilly
1778

à irlandesa













Gallerie des Modes et Costumes Français. 5e. Cahier des Costumes François pour les Coeffures despuis 1776. E.30 "Coeffure a l Irlandoise avec des fleurs..."
By Esnauts et Rapilly
1778

E, claro, para mitigar o fastio de nada fazer, os poufs de inspiração exótica:

à Cleópatra













Gallerie des Modes et Costumes Français. 1ere Suite des Costumes François pour les Coiffures depuis 1776. A.5 "la Phrigienne..."
By Esnauts et Rapilly
1778

à Asiática













Gallerie des Modes et Costumes Français. 5e. Cahier des Costumes François pour les Coeffures despuis 1776. E.28 "Coeffure à la Flore..."
By Esnauts et Rapilly
1778

à sultana













Gallerie des Modes et Costumes Français. 4e. Cahier des Costumes Français pour les Coeffures en 1777 et 1778. D.22 "La Bourgeoise petite-maitresse, en demi négligé..."
By Esnauts et Rapilly
1778

Para além da falta de higiene e do facto da rainha ter ficado sem cabeça para usar poufs, tudo isto era uma grande maçada: as flores murchavam, os frutos apodreciam, as cabeleiras pesavam, para as senhoras se deslocarem de carruagem muitas vezes tinham de viajar de joelhos, as portas tinham de ser aumentadas... Nem mesmo o patriotismo da Belle-Poule jogou a favor da aristocracia e quando veio a Revolução e a guilhotina, o pessoal achou que era altura de baixar a crista.

E assim aconteceu, meus anjinhos. Durmam bem e não se esqueçam de lavar as partes baixas.

3 Comments:

Anonymous Anónimo said...


Devia ser muito difícil pintar estas senhoras com estes grandes poufs e manter o cânone, quer ele fosse o de sete cabeças e meia ou o de oito cabeças. A não ser que se fizesse como fez Gustave Caillebotte, que para manter o cânone de duas figuras acrescentada dum guarda-chuvas, cortou-lhes uma medida. Tudo isto está muito bem explicado neste sensato artigo intitulado

sete cabeças e meia e mais um guarda-chuvas.

8/2/21 3:39 da manhã  
Anonymous Anónimo said...


O quadro de Caillebotte é naturalmente o dia de chuva em Paris.

8/2/21 3:42 da manhã  
Anonymous Anónimo said...


Agora sim, aqui fica o link para o artigo

seis cabeças e meia e mais um guarda-chuvas.

8/2/21 4:08 da manhã  

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