segunda-feira, junho 11, 2018

- o carteiro -















Van Gogh
Fifteen Sunflowers in a Vase
1888
National Gallery, Londres

quando a minha idade era outra que não esta (Eu era feliz e ninguém estava morto), as idas ao campo, a casa dos avós eram uma aprendizagem: de factos, e mitos. Aprendia-se como se fazia farinha, o quanto custava ordenhar uma vaca, a quantidade de lenha necessária para uma refeição... mas havia igualmente a ficção.

"vai buscar água para acender o lume"- uma expressão que ouvia a minha avó dizer várias vezes à minha tia e que me parecia uma antítese. e a minha tia lá ia. Havia um poço, é verdade, mas até o poço chegar a água para cozinhar, para lavar alimentos e pessoas era água do rio que a minha tia trazia numa espécie de ânfora de plástico, em cima da cabeça, sobre um pano enrodilhado que lhe dava para coroa, mas também para abanico.

"bicarbonato de sódio" - um dia, abeirei-me da panela em tripé que borbulhava nas brasas da cozinha velha (sim, porque os meus avós viviam claudicantes entre a vergonha de mostrarem alguma prosperidade fruto do trabalho no campo, da venda de pão caseiro porta-a-porta e da emigração e o orgulho na sua pobreza honesta, que eles acentuavam saindo à rua com os piores andrajos. tinham por isso uma cozinha velha e uma cozinha nova que nunca utilizavam). mas lá estava junto à panela quando vi a caldeirada de natal a ser cozinhada e vi igualmente a minha avó a deitar para a panela um pó branco. "estou tramada", pensei eu. "queres ver que a minha avó é bruxa e isto é uma poção mágica?". mas não... infelizmente a resposta foi mais simples, mas nem por isso menos surpreendente: "bicarbonato de sódio", respondeu a minha avó à pergunta: "o que é isso?". "para quê?", voltei à carga. "para as pencas ficarem mais verdinhas", respondeu-me ela. Eu ri-me fortemente. Para mim bicarbonato de sódio era o que a Vera usava para lavar os dentes. Para estes ficarem mais... branquinhos. A minha avó levou a mal e passou o Natal amuada.

canja de galinha e porco - nunca comi, em casa da minha avó, outra coisa que não fosse caldeirada de Natal, no Natal; e rojões de porco aquando da matança. curiosamente o almoço da matança era sempre precedido por uma canja de galinha o que me parecia uma estranha mistura. Os rojões eram acompanhados por arroz de fressura (não queiram saber o que era), sangue de porco e alface. Bebia-se gasosa Uprel ou vinho caseiro. Terminava-se com pão-de-ló ou rolo de chocolate. dormia-se até casa na parte de trás de uma Morris Marina branca.

deus te acrescente - a minha avó fazia pão. dobrada sobre si mesma e sobre a masseira, batia no pão e deixava a massa descansar junto ao fogão e aos gatos de olhos melados, com um fino pano branco por cima. às vezes dava-nos um bocadinho de massa crua. aquilo era bom. ou pelo menos, diferente. colava-se ao céu da boca como a hóstia, mas sem a obrigatoriedade de assistir a uma missa inteira. Antes de meter o pão no forno - pão que ela moldava redondo com as mãos e a parte interior dos antebraços - desenhava-lhe uma cruz e dizia "São Mamede te levede, São Vicente te acrescente, São João te faça pão e Deus te deite a sua divina bênção.". Depois de tirar o pão do forno a lenha, e com as mãos insensíveis ao frio e ao calor, calejadas e grossas, partia um pouco, dava-nos não sem antes vaticinar: "pão quente, muito na mão, pouco no ventre!" A minha avó tinha uma série de dizeres que provavam a sua superstição: não se podia abrir um guarda-chuva dentro de casa, nem cantar à noite, nem mesmo partir uma garrafa de azeite. Dava azar. No caso da garrafa de azeite compreendo o azar que dava: limpar aquela porcaria era um grande azar... Havia outros rituais proibidos como deitar fora a água do banho já depois das vésperas. Era deixar a água suja dentro da bacia (em casa da minha avó não havia casa de banho. Tomava-se banho completo uma vez por semana, na adega, dentro de uma bacia de plástico. nos restantes dias, lavava-se as partes pudibundas) e atirá-la para junto da casota do King (cão arraçado) na manhã seguinte. Também não se podia beber água durante a noite, pois a água, tal como as pessoas, também dormia. Beber água durante podia matar. Não beber... também não lá muito boa ideia...