- o carteiro -
Van Gogh
Fifteen Sunflowers in a Vase
1888
National Galleru, Londres
quando a minha idade era outra que não esta, Jesus estava presente na minha vida. Amén!
Agora a sério: quando a minha idade era outra que não esta, eu era muito dada às coisas da religião. Primeiro por causa da minha avó que me levava sempre à missa do final da tarde, quando me apanhava com ela. "Vais comigo para me ajudares a atravessar o parque!". E eu lá ia. Até gostava de ver aquelas coisas: a pia com água benta (que eu, que não tinha altura suficiente para espreitar, achava que estava sem água pois nunca via ninguém com as mãos a pingar), as senhoras numa das laterais a pedir para "a conferência de São Vicente de Paulo" ("que conferência do caraças", pensava eu), o pedinte no fundo das escadas, com um pacote de planta (dos verdes, antigos) a servir de caixa de esmolas, o sacristão que tinha uma perna mais comprida que outra e usava um sapato compensado preto. A minha avó tinha em casa, em cima de um pano que cobria uma cristaleira sem cristais, mas com copos altos decorados com estrelas e que se usavam no dia de Natal, um prato pintado com o rosto do Papa João Paulo II. Não ouvia o terço, mas ensinou-me a rezar. A minha outra avó, que não me levava à missa, introduziu-me ao universo quaresmal e a essa grande festa dos sentidos que é o Domingo de Aleluia na aldeia, com as suas varandas adornadas de colchas - colchas nunca usadas e que a muito custo eram compradas por aquela gente que escondia o dinheiro debaixo do colchão - as soleiras das portas cobertas de jarros e verdes, os biscoitos comprados na vila, em cima da mesa junto a dois copos de Porto e um envelope para o compasso, o beijar do pé ou do joelho de Cristo, a comida farta (porco, acho eu).
Mas eis que chega a altura de entrar para a catequese e com ela, Cristo como obrigação. Vejamos: eu não amava Cristo. Nunca amei e ele que me perdoe. Sempre tive medo dele, que ele me castigasse por eu não ser uma boa menina. Então esforçava-me muito para ser exemplar, mas ele castigava-me na mesma. Como deixei de perceber a lógica da coisa, deixei-me ir, em piloto automático, sem fazer perguntas. Uma vez que meus pais eram catequistas e todos os amigos dos meus pais, catequistas eram, de que me serviria argumentar? Fui vestida de anjo na procissão, participava em todas as acções de caridade e lia frequentemente na missa. Na minha primeira comunhão li a leitura do Livro da Sabedoria que decorei na véspera da cerimónia, enquanto fazia o pino no sofá da sala e do qual ainda hoje recordo partes:
Leitura do Livro da Sabedoria
A Sabedoria brilha sem perder a frescura. Deixa-se [...] àqueles que a amam e [...] aos que a procuram. Quem a busca desde a aurora, não se fatigará, pois há-de encontrá-la sentada à sua porta. Meditar sobre ela é prudência consumada e quem não lhe consagra as suas vigílias, depressa ficará sem cuidados...
(e depois, sempre que recordo isto, dá-me vontade de rematar com um "Deus ao mar o perigo e o abismo deu, mas nele é que espelhou o Céu". Eu sei, são coisas diferentes). Aquilo às vezes aborrecia-me pois parecia monótono. Uma repetição, ad eternum, de uma ideia simples: "sê bom, altruísta, puro de coração, generoso. Aí reside Deus". Mas nesses tempos, houve coisas boas, como os saraus de Natal no Salão Paroquial, as festas de final de ano, os passeios à Serra da Estrela... Com eles vieram tardes de praia a jogar cartas na barraca da Luísa e da Ana Maria; lanches em casa da Tânia, férias com a Sofia e a Maria João. Era tudo muito bom, mas Cristo não estava no meu coração. E o Cristo da catequese estava cada vez mais longe do Cristo necessário para o quotidiano.
Sempre rezei e fiz tudo o que tinha a fazer sem o considerar uma obrigação, mas não me conseguia concentrar: não ouvia uma homilía do princípio ao fim e dava muitas vezes por mim a encontrar contradições entre a Primeira Leitura e o Evangelho. Adormecia a rezar, talvez porque rezasse muito. Achava que Deus ou o seu filho ou fosse quem fosse (não tinha preferência) me podia aliviar o fardo familiar que tinha, isto quando percebi que o problema não estava nos comprimidos Bekunis. No fundo, sempre soube, mas custava-me, com tão pouca idade, aceitar isso. Mas Deus não ajudou e eu, ou porque tinha pouco peso e precisava de me concentrar na minha recuperação física, deixei-o de lado. Primeiro, por uma questão de saúde, deixei de ir à missa. Depois, e também por uma questão de saúde, deixei de rezar: os comprimidos davam-me sono. E percebi que estava bem comigo. E se eu estava bem comigo, ele também devia estar bem comigo. Se Deus, cuja grandeza supera o nosso entendimento, é assim tão grande, ele iria gostar de saber que estou bem. Por isso Deus, onde quer que estejas, se tiveres acesso à net e quiseres passar por aqui, era só para te dizer que estou bem. Sem mágoa, ok? Continuo a gostar do ritual e da teoria, mas quero outras práticas. Amigos?
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