segunda-feira, fevereiro 20, 2017

- o carteiro -

o espaço da gente

Há muitos anos participei numa escavação arqueológica de um castro. O que me chamou a atenção foi a dimensão das construções: minúscula. Interrogava-me como seria possível alguém dormir ali. Mais tarde, mais informada, visitei Conímbriga. As dimensões exíguas repetiam-se se bem que agora a habitação das camadas elevadas possuísse áreas destinadas a actividades: o gineceu (divisão para as mulheres), o androceu (divisão para os homens), o espaço para o fogo, o triclinium (para receber os convidados), o atrium, etc. Ainda assim - e não obstante essa existência de espaços para diferentes funções, algo que não acontecia com os castros - as divisões da casa romana pecavam (achava eu), por exíguas. E na Idade Média, o mesmo acontecia, se bem que com o tempo tudo isso foi sendo alterado.

Era natural que não existisse muito espaço dentro de um castro: não havia a noção de saúde pública, logo não havia rede de esgotos ou mesmo latrinas fora ou dentro da habitação; não havia computadores logo não havia escritório; o tempo era passado a procurar comida ou a tratar dela (gado) e por isso a vida familiar devia ser muito limitada. No que concerne à antiguidade, a vida na pólis e a pólis em si eram mais importantes do que o cidadão, o indivíduo. Havia um espaço para o fogo que deveria estar presente para os deuses, havia um espaço para eles, um espaço para elas, cozinha e latrinas, havia - em alguns casos - sistema de esgotos, mas as dimensões de cada uma destas divisões era de facto muito pequena. Porquê? Porque esta gente tinha poucos bens e uma noção de habitação diferente da nossa. Esta gente não tinha coisas. Já leram algum inventário do século XVII ou visitaram o Mosteiro de Arouca? tanto num caso como no outro encontrarão evidências de que os nossos antepassados eram muito parcos em bens. Não havia camas, não havia mesas; ou seja, quando ouvem a expressão "fazer a cama" ou "pôr a mesa", isso tem uma razão de ser. As camas não eram objectos, mas lugares. Geralmente lugares da casa perto do fogo, perto do lume, onde se cozinhava. dormia-se em enxergas. As mesmas que se usavam para dar à luz, fazer filhos, receber convidados, comer... Da mesma forma, não se punha a mesa: um nobre que andasse de palácio em palácio não possuía, em cada um dos seus palácios, mobília completa. Não, a mobília era carregada com o séquito para outro palácio. Daí a expressão "pôr a mesa".
 
Também na Idade Média as casas eram pequenas e mal arejadas. Existia a ideia que o ar trazia doenças, e por isso, quanto maior fosse a casa, pior seria. As janelas eram altas para evitar os roubos e por isso o interior das casas era naturalmente lúgubre, a combinar um pouco com a ideia de que tudo deveria ser feito Ad Majorem Gloria Deo. Talvez por isso as grandes e arejadas construções da Idade Média tenham sido as religiosas. À medida que surgem as preocupações com a higiene, surgem casas-de-banho e espaços mais arejados, maiores; à medida que as camadas mais baixas da sociedade começam a questionar o seus governantes e exigir melhores condições de vida, surgem construções maiores; à medida que uma burguesia endinheirada ascende e se interessa pela literatura, pelo teatro, pela política e recebe em casa, surgem pequenas bibliotecas e espaços para tertúlias; à medida que a ideia de intimidade e privacidade se instala (ideia que nem sequer tem uma palavra em comum em todas as línguas), exigem-se quartos para pais e filhos. E chegamos onde estamos hoje: somos cada vez menos, há cada vez menos filhos e as famílias são cada vez menores. Não obstante, temos casas cada vez maiores e acumulamos mais tralha. Material e da outra.

4 Comments:

Anonymous ana said...

belíssimo.

20/2/17 12:47 da manhã  
Anonymous pedro b. said...

já tinha ouvido falar da origem da expressão "pôr a mesa", mas não sabia dessa coisa da cama. Faz sentido, se nos lembramos dos japoneses e dos seus “futon”: desdobra, dobra, volta a guardar…
Uma coisa que me impressionou nas camas antigas (fins da Idade Média? Renascimento?) é que eram muito pequenas. Primeiro pensei que fosse por as pessoas serem de baixa estatura ou dormirem meio encolhidas; depois descobri que era porque dormiam sentadas, a conselho dos médicos.

23/2/17 11:37 da manhã  
Blogger Belogue said...

Oi Ana, boa noite

Não é nada de especial, se queres que te diga. Pelo menos não me parece nada de especial. É engraçado ver que uns leitores privilegiam uns textos, enquanto eu gosto mais de outros. Escrevi que coisas que achei boas (menos más) e ninguém disse nada. Já este texto, que vem na sequência de uma série de coisas de que já me tinha lembrado, coisas avulsas, é, na tua opinião, belíssimo. Olha, o que é que posso dizer: obrigada, volta sempre e porta-te bem.

26/2/17 9:44 da tarde  
Blogger Belogue said...

Olá professor, boa noite

Sim, dormiam sentadas a conselho dos médicos que tinham teorias estranhas acerca dos humores do corpo humano e outras formas de resolver os problemas que não conseguiam perceber. (um dia eu e a Ana falávamos das cartas de Tarot e das suas limitações em ler o futuro - no caso em concreto, no que à saúde dizia respeito - e ela defendia que as cartas de Tarot eram limitadas como era limitada porém completa a teoria dos humores do corpo humano. Tudo se resolve com quatro humores).
Mas talvez dormissem sentados por superstição, por medo de serem surpreendidos pela morte durante o sono e "acordarem mortos". Creio, não sei, que esta minha ideia tem base em algumas das coisas que li acerca da Idade Média, mas não posso especificar.

Até breve

26/2/17 9:50 da tarde  

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