sábado, dezembro 31, 2016

- ars longa, vita brevis -
hipócrates

antes e depois ou como sou "muita" burra, "muita" asna! como é que nunca tinha reparado nisto, como? anos e anos a ver livros de arte, a ir a museus a ler coisas interessantes e só há uns dias, na cama, a ver um livro e à espera do sono é que descobri isto:

















Jan van Eyck
The Virgin of Chancellor Rolin
1436
Musée du Louvre, Paris


















Rogier van der Weyden
St Luke Drawing a Portrait of the Madonna
1450
Museum of Fine Arts, Boston

Tomem o quadro do van der Weyden e apliquem-lhe uma rotação sobre um eixo vertical:

















Digam lá se não fica parecido com o quadro do Van Eyck. O quadro do Van Eyck foi a fonte para o quadro do van der Weyden, disso não há dúvidas, embora se trate de temáticas diferentes. E isso agrada-me: uma coisa era usar o mesmo modelo para a mesma temática; outra diferente é usar o mesmo modelo para um tema de natureza diferente. Enquanto o Van Eyck coloca a Virgem com o menino ao colo, frente ao Chanceler Rollin (que encomendou a obra), numa loggia ao estilo italiano, aberta para um jardim através de colunata e daí para uma paisagem flamenga na qual se destaca o casario à direita, o rio em frente e as duas personagens de costas, van der Weyden elimina a coroação da Virgem, coloca-a a amamentar o Menino, troca a arcada pelo trílito e substitui o Chanceler Rollin por São Lucas, o retratista da Virgem e protector dos artistas. Na minha muito modesta opinião, o traço do Van Eyck tem uma maturidade e delicadeza que o de van der Weyden não tem embora a pintura de van der Weyden seja posterior à de Van Eyck. Li algures que van der Weyden articula melhor que van Eyck, os planos, mas veja-se o rosto da Virgem ou mesmo o Menino: em Van Eyck ele tem naturalidade, em van der Weyden está hirto, parece um boneco.  

Convém lembrar que tanto uma como outra pintura se enquadram numa nova forma de ver a relação do crente com Cristo, denominada devotio moderna e que defendia que a aproximação entre o crente e o divino se devia fazer através da representação desse divino, no ambiente do dia-a-dia. Daí a pormenorização, os traços identificadores das personagens não divinas, algo que é apanágio da pintura flamenga deste período, por oposição aos traços estereotipados, tipificados, da pintura italiana da mesma época. Van Eyck trabalha tudo: brocados, capitéis, vitrais, jóias, ladrilhos... Van der weyden fica-se pelo baldaquino do lado da Virgem e os ladrilhos. Tanto o pequeno jardim que separa a loggia da varanda, como a paisagem para além desta, apresentam-se mais áridos, menos fervilhantes e vívidos, o que é uma pena, mas se compreende. O quadro pintado por van Eyck foi encomendado por um homem poderoso que queria com esta encomenda mostrar o seu poder, mas também "assegurar" o seu lugar junto do Altíssimo aquando do Juízo Final. É um quadro que serve o seu marketing pessoal. Já o quadro de van der Weyden, mais modesto, não tem a quem agradar a não ser ao crente. A mensagem que transmite é religiosa e não política e por isso não necessita de se socorrer dos artifícios da política.

Beijos e portem-se bem.

3 Comments:

Anonymous pedro b. said...

E eu sou tão burro que não sabia o que é um trílito - olhava para lá e só via duas colunas...
Não percebi muito bem como é que eles faziam isto (faz lembrar aquela história do Casamento dos Arnolfini), mas suponho que deviam ser desenhos (cópias) feitos a partir do quadro original, que depois eram decalcados(?) para um novo painel - resultando o desenho invertido.
Também não percebi muito bem o que quer dizer isto: "Daí a pormenorização, os traços identificadores das personagens não divinas, algo que é apanágio da pintura flamenga deste período, por oposição aos traços individualizados da pintura italiana da mesma época." Traços identificadores vs. traços individualizados? Qual é a diferença?

beijos e
votos de um Bom Ano 2017!

5/1/17 3:32 da tarde  
Anonymous pedro b. said...

Bem, parece que não consigo resistir a colocar sempre dois ou três post seguidos!!…
Nas representações de um doador (ou de um santo) com a Virgem, o mais habitual é a imagem masculina situar-se à esquerda, talvez por semelhança com a iconografia habitual da Anunciação (o anjo à esquerda) ou porque nos retratos dos doadores o homem, ou os elementos masculinos da família, ficavam à esquerda e as mulheres à direita – por exemplo nos ‘volantes’ dos trípticos. (Isto não significa menos importância do masculino, pelo contrário: o lado esquerdo da imagem era o lado direito do santo, ficavam “à direita”, i.e. no lugar de maior respeito).
No quadro de van der Weiden, S. Lucas está à direita, uma disposição menos habitual. Porém, descobri que existe uma estátua (datada de 1937), que coloca van der Weiden /S. Lucas na posição contrária. Fica em frente à catedral de Tournai, de onde van der Weiden (que aliás se chamava Roger de la Pasture) era originário.

http://c8.alamy.com/comp/CTXXDK/enameled-bronze-statue-of-rogier-van-der-weyden-roger-de-la-pasture-CTXXDK.jpg

http://www.archeologia.be/tournai_photos_2012_04-48.jpg

http://www.archeologia.be/tournai_RogerdelaPasture.html

Na verdade, diz-se por vezes que o S. Lucas do quadro de van der Weiden é um autorretrato disfarçado. Seja como for, existe um retrato de van der Weiden, por Cornelis Cort (1572, ou seja c. 100 anos após a morte do retartado), aqui:
https://en.wikipedia.org/wiki/Rogier_van_der_Weyden

5/1/17 4:09 da tarde  
Blogger Belogue said...

Olá professor, boa noite

Deixe-me ver se consigo responder-lhe antes do computador ir abaixo (agora deu-lhe para isto... nem consigo escrever...).
Não se preocupe: eu sinto-me burra todos os dias, várias vezes ao dia.
Obviamente estava com a cabeça na lua quando escrevi que a pintura do renascimento italiano apresentava personagens com traços individualizados. Não eram individualizados: eram como uma fórmula aplicada para as diferentes personnas. Nota-se bem isso nas virgens do Botticelli: são todas iguais. E mesmo quando não se tratava de personagens divinas, mas antes membros de famílias conhecidas, condottieri, damas... a forma de representar era sempre igual (e isto não tinha nada a ver com modelos de beleza): frontal, rosto simétrico, sem expressão, sem emoção.
Vou corrigir (se o computador deixar...)

Bem, até agora não foi abaixo. Vou arriscar:
Para além deste quadro do Van der Weyden, há um outro, muito conhecido, que coloca o doador à direita: Virgin and Child with Canon van der Paele do Van Eyck. Ora aí está! Um quadro muito importante, muito estudado e onde o doador está à direita. Quer dizer, ele está como quer, entre a Virgem e São Jorge, à direita de um e à esquerda de outro! Para além disso, o quadro tem aquele reflexo do próprio Van Eyck na armadura do santo que me demorou dias a descobrir!

Vejo os seus links no fim de semana quando resolver este imbróglio com a tecnologia. Tenho receio de abrir outras janelas e isto "morrer".

Beijos e até breve! b.

5/1/17 10:31 da tarde  

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