segunda-feira, outubro 05, 2015

- o carteiro -

A arte da felicidade, uma ova

às vezes irrita-me um bocado que subvalorizem o impressionismo: "ah e tal, é a arte da felicidade". ainda que seja a arte da felicidade, não há mal nenhum em ter a felicidade como ilusão. e a felicidade não tem de ser um tema menor para qualquer forma de arte. aliás, é suposto que entre outras coisas, a arte nos traga alguma forma de felicidade. A mim traz! mas a felicidade só o é porque quase nunca o é; ou seja, só apreciamos e desejamos aquilo que quase nunca possuímos. e acredito que, assim como ninguém é sempre e completamente infeliz, também ninguém é completamente feliz. mesmo um felizardo como o Degas, que para além de ter pertencido aos que pintavam a "felicidade" era também um tipo de posses materiais. o que dá sempre jeito embora não traga a felicidade (cliché aplicado, vamos ao que interessa).
Nos quadros do Degas é possível ver bailarinas a ensaiar, e cavalos de corrida, mas também cenas tensas de famílias infelizes, coroadas por alguns pormenores que por vezes nem vemos. O Degas utilizava muito aquele truque dos quadros dentro dos quadros. Para mim, são como olhar para dentro da janela de um prédio e ver o que fazem os que lá estão. ou assistir a uma peça de teatro. ou assistir a uma peça de teatro com analepses. 
Um exemplo, não só da infelicidade nos quadros de Degas, como da presença de quadros dentro de quadros é este Bellelli Family. A figura masculina é o tio de Degas que uma vez lhe confessou que de facto a família não era lá muito feliz. Há aqui qualquer coisa de "As Meninas" de Velazquez, não por causa da presença de meninas, mas por causa do espelho e da porta que abrem o espaço para além daquilo que podemos ver, e pela presença dos progenitores, nenhum deles de frente para a pintura e que parecem supervisionar as duas crianças. As imagens difusas do lado do tio (o espelho grande que reflecte outro mais pequeno e que reflecte uma pintura), contrastam com a nitidez do retrato junto ao rosto da tia de Degas. O mais engraçado neste retrato, que é um estudo para um retrato, é que na realidade ele parece nunca ter existido. Não se conhecem estudos para o retrato que Degas de facto fez do seu avô René-Hilaire de Gas. Quando Degas inclui o suposto estudo de uma obra que já existia, o seu avô já havia morrido e por isso tanto mãe como filhas vestem de luto. A presença da imagem dos ancestrais junto do mundo dos vivos vai beber à tradição flamenga renascentista do retrato de grupo (The Van Berchem Family de Frans Floris, por exemplo). O próprio Degas afirmou a sua ligação ao retrato holandês. Mas o retrato do avô de Degas tem semelhanças com o desenho renascentista: vista a três quartos da cabeça e do busto, a sanguínea, em contraste com o azul e dourado da moldura (lembra os desenhos dos Clouet, não acham?). 










Edgar Degas
The Bellelli Family
1860-62
Musée d'Orsay, Paris











Edgar Degas
The Bellelli Family (pormenor)
1860-62
Musée d'Orsay, Paris













Edgar Degas
René Hilaire de Gas
1857

Degas usou novamente o espelho e o retrato emoldurado no quadro que executou da sua irmã, Thérèse Morbilli. Mas ao contrário do quadro anterior, em que o espelho e o retrato surgiam de forma mais plana, estes aqui são usados para transmitir profundidade e de certa forma, falarem da riqueza desta senhora que havia casado com um primo, o Duke de Morbilli, após autorização papal. Thérèse mostra-se num interior ricamente decorado, num estilo até um pouco pesado para a época, mas que espelha a sua condição de mulher da mais alta sociedade. Podemos pensar que ela posa em casa, em sua casa, mas na verdade, ela posa em casa do pai de Degas, e seu pai, na sala de desenho deste, aquando de uma das suas visitas a Paris. Atrás, encontra-se, muito provavelmente, o retrato de Mademoiselle Miron de Portioux, da autoria de Jean-Baptiste Perronneau que fazia parte da colecção privada do pai de Degas, um banqueiro que se dava com grandes coleccionadores do seu tempo e que possuía várias obras de La Tour.  












Degas 
Portrait of Thérèse Morbilli
1869
Colecção Privada














Degas 
Portrait of Thérèse Morbilli (pormenor)
1869
Colecção Privada













Jean-Baptiste Perronneau
Mademoiselle Miron de Portioux
1771
Colecção Privada

Dentro do que referia atrás da tensão em alguns quadros de Degas (o da Família Bellelli, The Rape, etc...) conta-se este apelidado de Sulking ou The Banker. A tensão desta obra pode ser parcialmente revelada a partir do quadro rectangular de fundo que une a cabeça dos dois intervenientes. O quadro que vemos no fundo é uma cena de corrida de cavalos, mas que não pertence a Degas. É antes uma cópia de um artista inglês de seu nome John F. Herring. Degas vai buscar para este quadro, não só a pintura de Herring na sua totalidade, mas também parte da mesma, usando o cavalo e respectivo jockey do canto inferior direito como modelos para o seu False Start. 
    









Edgar Degas
Sulking
1870
Metropolitan Museum, Nova Iorque









Edgar Degas
Sulking (pormenor)
1870
Metropolitan Museum, Nova Iorque








Cópia de Steeple Chase de Herring









Cópia de Steeple Chase de Herring (pormenor)











Degas
False Start
1870
Yale University Art Gallery


Uma vez que o pai de Degas era banqueiro, não terá sido muito difícil criar o decor do espaço, que possui, na pintura, todos os elementos para descrever o escritório de um banqueiro. a pintura na parede poderá estar apenas dentro da moda do tempo que trouxe para a ribalta as corridas de cavalos. As personagens que não se olham dão origem a um outro quadro - Conversation - , também de Degas e igualmente, na senda de algo típico da época: a expressão das emoções na arte, mesmo que essas fossem de tédio, ira ou tensão. N'O Absinto, vemos o tédio; aqui, a tensão. Os modelos foram Duranty, amigo de Degas e percursor do Naturalismo  - e que rapidamente caiu no esquecimento devido ao sucesso de Flaubert e Zola; e Emma Dobigny a modelo preferida de Degas. Enquanto no primeiro caso as duas personagens se ligam, de forma claudicante pelos saltos dos cavalos, que reafirmam o espaço social deste homem e desta mulher, aqui o quadro é apenas uma mancha de duas cores.  










Edgar Degas
Conversation
1895
Yale University Art Gallery

Face à Familia Bellelli, a situação inverte-se no quadro The Collector of Prints: aqui é o fundo que tem mais força e quase se sobrepõe à figura humana que, no fundo, dá título ao trabalho e que, de resto, é anónima. ora este anonimato é paradigmático de uma certa atitude dos coleccionadores do tempo que quase se anulavam ante a obra de arte, dedicando-se inteiramente a ela. o coleccionador parece absorto e vira as costas às próprias obras que colecciona e que são exemplos de arte popular, mas também sofisticada do Oriente (o Oriente estava na moda) e da Europa. Na mão segura uma litografia de uma rosa, sendo que na mesa atrás dele também se encontram mais destas litografias. O Oriente e o Ocidente encontram-se também na pequena estatueta do cavalo, no lado esquerdo. Do Oriente, provavelmente da dinastia T'ang, vem a posição das patas e da cabeça, submissa. Do Ocidente, vem a crina pintada de forma realista, por Degas. Outra junção/justaposição de Oriente e Ocidente pode ser vista no painel de fundo: os fragmentos mais pequenos como envelopes, cartões, fotografias são típicos da Europa, enquanto os maiores e mais coloridos são pedaços de seda típicos do Japão. Estes fragmentos são sem dúvida o mais importante neste painel. Eram usados para encadernar cadernos ou livros de bolso e muito admirados por Manet, Whistler, Tissot, entre outros, pela harmonia das cores














Edgar Degas
The Collector
1866
Metropolitan Museum of Art, Nova Iorque













Edgar Degas
The Collector (pormenor)
1866
Metropolitan Museum of Art, Nova Iorque














Edgar Degas
The Collector (pormenor)
1866
Metropolitan Museum of Art, Nova Iorque










Edgar Degas
The Collector (pormenor)
1866
Metropolitan Museum of Art, Nova Iorque


No retrato que fez de Tissot, nos mesmos anos em que pintou o Coleccionador, Degas opta por uma composição mais clássica no jogo de rectângulos, mas nem por isso menos arrojada. Os seis rectângulos de fundo (correspondentes a seis telas), estão constantemente a ser entrecortados uns pelos outros ou pelos limites da tela. Tissot é quase decorativo neste espaço assumindo uma atitude de elegância e indiferença (não sabemos se visita um atelier ou se está no seu atelier e a sua expressão facial também não ajuda a descobrir. por este tempo Tissot era um artista reconhecido e, talvez por isso, um dandy. mas isso não pode ser cobrado a um homem...). Degas também era e por isso, as pinturas de fundo poderiam ter sido pintadas por qualquer um dos dois, à excepção do retrato junto ao rosto de Tissot que é uma pintura de Cranach. há alguma afinidade entre os dois retratados; ou seja, entre Tissot e Frederik: ambos com o seu bigode elegante, ambos voltados para o seu lado direito.















Edgar Degas
James-Jacques-Joseph Tissot
1867-68
Metropolitan Museum of Art, Nova Iorque















Edgar Degas
James-Jacques-Joseph Tissot (pormenor)
1867-68
Metropolitan Museum of Art, Nova Iorque














Lucas Cranach, the Elder
Portrait of Elector Frederick the Wise
1530s
Colecção Privada

 A tela horizontal, atrás de Tissot não lembra nada conhecido. É sem dúvida uma cena japonesa, mas que não tem referência com nenhum dos quadros nem de Tissot, nem de Degas, embora um e outro tenham pintado cenas com influência oriental. Tissot chegou mesmo a alugar um vasto conjunto de trajes japoneses para, talvez, a tela Japanese Woman at the Bath. A coisa mais parecida com aquela tela atrás de Tissot é um painel de Eishi, que está no British Museum e que apresenta, como semelhanças, a presença de mulheres com trajes tradicionais, e a orientação da tela.






Edgar Degas
James-Jacques-Joseph Tissot (pormenor)
1867-68
Metropolitan Museum of Art, Nova Iorque








Eishi
Evening under murmuring pines
1800
British Museum, Londres

A tela que se encontra no lado direito é de difícil identificação. Muito difícil, até. Há quem diga que se trata de uma espécie de Dejeuner sur l'herbe. O Dejeuner sur l'herbe "original" - ou pelo menos aquele que todos identificam - é o de Manet. O que não quer dizer que não houvessem outros almoços na relva. de facto, a vida ao ar livre é apanágio da sociedade deste tempo que muito beneficiou com a iluminação pública e optimismo generalizado. Tissot, por exemplo, pintou um Almoço na Relva, mas os trajes não parecem ser os mesmos deste fragmento. 















Edgar Degas
James-Jacques-Joseph Tissot (pormenor)
1867-68
Metropolitan Museum of Art, Nova Iorque











Tissot
Partie Carree
1870
Colecção Privada

O outro quadro que se encontra dentro deste retrato de Tissot é, aparentemente, um resgate de Moisés das águas do Nilo. Vemos, na parte de cima a filha do faraó a dirigir-se ao Nilo, enquanto na parte de baixo uma serva retira a criança e o cesto das águas. Não é conhecida nenhuma pintura de Tissot ou Degas acerca deste tema, a não ser por cópias que os mesmos fizeram de alguns autores. Também não é conhecida nenhuma pintura do Barroco com estas características. Digo "do Barroco" pois dado o violento contraste de cores, e a disposição das figuras na vertical e em torção, é muito provável que se trate de uma pintura Barroca. No entanto, e tal como foi dito, os dois fizeram cópias dos grandes mestres: Degas interessou-se pela pintura veneziana; Tissot também mas tinha outras preferências. Ao colocar na mesma tela uma pintura com referências ao japonesismo, outra aos grandes mestres, ao Renascimento, à arte do retrato, Degas mostra quais são as suas afinidades artísticas













Edgar Degas
James-Jacques-Joseph Tissot (pormenor)
1867-68
Metropolitan Museum of Art, Nova Iorque



(continua...)