segunda-feira, setembro 20, 2010

- o carteiro -

Olá, tudo bem? Por aqui vai-se andado. Hoje tenho para vocês, dentro deste conjunto de posts que pretendo escrever sobre o auto-retrato (Laura Cumming, "A face to the world - on self portrait"), dos quais o primeiro foi este, um post sobre o auto-retrato que olha indubitavelmente o observador. Estas pinturas vão pontuando o Belogue aqui e além, mas nunca tinha feito um post apenas sobre isso e não com o material que apresento aqui e de cujos créditos são da autora do livro. Mais poderíamos acrescentar quanto às imagens, mas acho que assim também estão bem. O que se passa com este nosso post de hoje é que nem sempre o olhar do artista para o exterior da tela pode ser interpretado à luz das suas vivências ou como um desafio ao observador. Muitas vezes o retrato é apenas a expressão de uma vontade de alguma, e totalmente merecida, visibilidade. No século XVI era raro o retrato de pintor ou mecenas desta forma: virado para o observador. Os patronos geralmente apareciam de perfil por duas razões: ficavam com ar de éfige e de figura distante, e eram mais fáceis de representar e mais económicos na quantidade de informação que davam a conhecer. Mais tarde a pintura italiana começou a adoptar retratos a três quartos. Mas de qualquer forma, a pintura dos retratos e dos auto-retratos não é a mesma coisa: uma exibe-se, quer ser vista para a prosperidade. A outra, os auto-retratos, mostra um momento muito íntimo do autor e de quando em vez, como é o caso do post de hoje, olham-nos. Assim e neste caso a pintura é mais do que uma coisa, um suporte ou uma autoria, mas mais uma pessoa, não porque contém a imagem de uma pessoa, mas porque como uma pessoa nos inquire.

Vamos então começar com Sandro Botticelli que utiliza a forma mais paradoxal para fazer este confronto visual com o observador. Botticelli escolhe um tema do qual ele nem deveria constar: uma Adoração dos Magos que faz o artista recuar nos séculos até ao nascimento de Cristo e para além disso, representa-se num tema que visa o Criador e não ele. E mais ainda: caso desejasse mesmo estar presente nesse grande acontecimento que é a adoração, o pintor deveria estar a olhar para o menino, como todos os retratados, e não para fora. (este é apenas um pormenor do quadro. o mesmo desenvolve-se para a esquerda). Sabem com quem ele está parecido (parece ter os mesmos olhos) neste retrato? Com o actor principal do filme "Laranja Mecânica". Até o rosto é parecido. É este olhar que faz Botticelli destacar-se, já que não é o único elemento do quadro que se encontra nas extremidades do mesmo. Desconheço em que altura da vida de Boticelli este conheceu Savonarola, uma vez que foram coetâneos, mas é sabido que o monge teve influência no pintor. Savonarolla alertava para a imoralidade dos retratos que cobriam as paredes, os retratos de temas sacros estarem mais para catálogo de mafiosos do que para ilustração de Saltério. E Botticelli, que pintou muitos desses homens que cobriam as igrejas pinta-se aqui não como um santo ou como um rei mago, tal como os seus mecenas, mas quase como um justiceiro. E olhar de Botticelli acentua-se quando em vez de olhar para dentro, para a própria cena, olha para fora, negando assim o carácter do tema trabalhado.

O olhar é aqui nestes casos tudo, pois não fosse ele estar orientado na nossa direcção, este post não existia. É neste caso tudo, assim como o é na vida. As pessoas dizem-se enamoradas "à primeira vista" ou até que "os olhos são o espelho da alma". Mas era raro encontrar no século XVI em Itália retratos em que o observado (pintura) se virasse de frente para o observador (nós). O apanágio da época eram os retratos a 3/4 por várias razões: permitiam um certo afastamento do retratado que se colocava como uma efígie, permitiam o retrato mais rápido e condensavam em si mais informações. Quando surge este tipo de retrato que confronta o observador, o paradigma do mesmo muda, assim como muda o paradigma do auto-retrato: o retrato é para ser visto para a posteridade, para memória futura, olha para o infinito, enquanto o auto-retrato olha-nos no imediato e é mais do que a expressão de uma época ou de uma posição social. O auto-retrato é e expressão do interior, imutável independentemente dos anos que passem.

Sandro Botticelli
The Adoration of the Magi (pormenor)
1475
Galleria degli Uffizi, Florença


Guercino utilizou em seu favor esta forma de olhar para o observador, forma que bem vistas as coisas lhe poderia ser muito prejudicial. Quando falamos em retratos de 3/4 que olham o observador, não pensamos muito nesta possibilidade, mas Guercino teve de tê-la em consideração. Guercino quer dizer "estrábico" e de facto ele sofria de estrabismo. Para dissimular a sua diferença óptica face aos demais, pintou-se como era: com um olho em bico. Parece que nem olha para nós, só que olha como sempre olhou. Nós é que não notamos isso pois estamos habituados a outro tipo de olhar. Guercino usa uma sombra bastante escura para simular a perspectiva do rosto e consegue para além disso fazer outra coisa: ele leva-nos a adoptar perante o quadro a mesma posição que o próprio pintor teve perante o espelho quando estava a realizar o seu auto-retrato. Nós estamos agora na posição em que o retratado estava. No final dos seus vinte anos, Tintoretto fez o mesmo; pintou este retrato em que olha para nós do canto do olho com um ar inquisitório. O corpo parece não mudar, mas a cabeça roda ligeiramente na nossa direcção; as sobrancelhas sobem, testa fica ligeiramente franzida, os olhos são largos e de sombra profunda, mas com um certo dinamismo conferido pelo foco de luz que vai do canto superior esquerdo da pintura ao canto inferior direito. Anos antes de se descobrir de que forma trabalhava o olho humano, Tintoretto descobriu uma metáfora daquilo que mais tarde se veio a saber: o olho é uma extensão do cérebro que consegue uniformizar aquilo que vê.

Tintoretto
Self-Portrait
1547
Museum of Art, Filadelfia


Outra forma de acentuar o olhar pode ser através da posição em que a personagem se coloca: quando retratado num cavalo um nobre olha-nos sempre nos olhos (aliás, quando retratada em cima de um cavalo, uma pessoa passa sempre a ser um nobre), mas quase sempre temos dificuldade de nos vermos olhados nos olhos quando mandamos esse nobre descer do cavalo! Por exemplo, o pintor Giulio Paolini, reproduziu em 1960 um quadro de Lorenzo Lotto em que este representava o jovem Giovanni. Tudo se mantém no quadro/reprodução, excepto o título que passa então a chamar-se "Giovanni a olhar para Lorenzo Lotto"; ou seja, o observador passa a ser o próprio pintor, o que nos deixa enquanto observadores, bastante desconfortáveis. Para além de já não sermos nós, sermos o pintor, estamos a ser olhados pelo retratado. Obviamente aqui não estamos a falar de auto-retrato, mas vamos então a outro exemplo. Este senhor que aqui se apresenta é Anton Graff, um pintor muito requisitado no seu tempo para a empreitada dos auto-retratos. Não seria por isso de admirar que quando fez este auto-retrato tivesse muitos retratos entre mãos. Mas mesmo pensando no quão assoberbado o pintor poderia estar e no quão hábil ele era, nada poderia fazer com que ele pintasse estes dois retratos ao mesmo tempo. É que se repararmos, Graff trabalha numa tela que está do lado esquerdo (uma tela em que o representado não é ele pois não tem a pala), e trabalha no seu próprio auto-retrato. Por outro lado, Graff não olha para nós: como todos os outros, olha para um espelho que está no nosso lugar.

Anton Graff
Self-Portrait
1813
Alte Nationalgalerie, Berlim

O mesmo acontece com Chardin que nos olha pelo canto do olho (aliás, os próximos exemplos retratam isso): ele olha para o espelho para se poder retratar, mas ao mesmo tempo a sua expressão é tão sintomática que pensamos se Chardin apenas olha para o espelho. Ele olha para o exterior de lado, por cima das lunetas, com uma das sobrancelhas erguidas, mostrando que ele tem mais interesse por nós do que nós por ele, pois não fazemos a mesma expressão. E nem se importa que o vejamos em trajes menos próprios, com um pano a cobrir-lhe a cabeça, com uma roupa desajeitada e com marcas da doença de que padecia por lidar durante muito tempo com os óleos. Achamos graça a sua forma de se auto-retratar e ele acha graça por nós pensarmos que se trata apenas disso, de um auto-retrato e não de uma janela através da qual ele nos admira mais do que nós a ele. Imaginem-no no museu. Quando viramos costas ao seu auto-retrato, ele ainda lá estará a olhar para nós e para os que o verão e a admirar-se com a nossa boçalidade. Esta interacção com o público é tanto mais admirável quanto deserta de pessoas e emoções foi a sua vida. Chardin vivia sozinho em Paris, só saiu da cidade uma vez para visitar Versalhes e passava o dia a pintar naturezas mortas. A vida dele era a arte, o imóvel, o perfeito como a natureza e o facto de ter deixado - nem que por instantes - isso para pintar um auto-retrato é de si uma inovação.


Jean-Baptiste-Siméon Chardin
Self-Portrait
1771
Musée du Louvre, Paris


Rembrandt foi provavelmente o artista que mais se "auto-retratou" e entre os inúmeros retratos que pintou destacam-se uns quantos em que o pintor fica a olhar para o observador. No auto-retrato denominado "Self-Portrait, Wide-Eyed" Rembrandt faz mesmo uma brincadeira com os olhos abrindo-os muito como se estivesse admirado de nos ver e nós fôssemos os causadores do espanto dele.

Rembrandt
Self Portrait, Wide-Eyed
1630
Kuferstichkabinett, Staaliche Museen, Berlim


Um contemporâneo de Rembrandt, o florentino Lorenzo Luppi, vai ainda mais longe com este tipo de inquérito do pintor ao observador no auto-retrato "Self-Portrait" de 1655. Também numa expressão cómica Lippi olha-nos mesmo pelo canto do olho. É aliás esse o único olho que podemos ver pois o outro está na penumbra. O retrato pintado é igualmente um retrato do feitio de Lippi. Este pintor passou muito tempo na corte de Innsbruck, mas não a apreciava como os candidatos a frequentar a mesma. O pintor observava a aristocracia para colocar posteriormente por escrito textos em que chacoteava essa classe social.

Lorenzo Lippi
Self-Portrait
1655
Galleria degli Uffizi, Florença

Alguns artistas pretendem chegar até ao observador; outros até ao público num sentido mais abrangente, ainda que neste último caso simulem a normalidade olhando para o infinito ou baixando os olhos. Já Joshua Reynolds faz um pouco das duas ao assumir-se de frente para o observador, ao olhar-nos nos olhos, mas também ao declarar a sua intimidade com o ambiente como se pintor e observador vivessem no mesmo tempo, na mesma casa e fossem amigos. A autora tem uma teoria diferente que compreendo, mas que não me deixa totalmente satisfeita. Ela diz que Reynolds se pinta como um jovem aventureiro, um homem sem amarras que olha para o futuro enquanto empunha a sua espada (pincel longo). Em comum temos o facto de concordar com o tom bastante escuro dos olhos de Reynolds, tal como os eram os de Rembrandt que Reynolds admirava muito. Ele olha na nossa direcção, mas quase que olha através de nós como num palco. Aliás mais tarde Reynolds, já surdo, voltou a auto-retratar-se e nesse auto-retrato coloca a mão na orelha para tentar ouvir o que uma possível audiência lhe quer dizer ou simplesmente para mostrar ao observador que não ouve bem e que não tem qualquer problema em mostrar isso.

Sir Joshua Reynolds
Self-Portrait
1747-48
National Portrait Gallery, Londres


E voltamos ao princípio: aquele que olha para nós nem sempre olha de frente. Isso não quer dizer que nos dê menos atenção, mas simplesmente que pode estar a avisar-nos ou a espiar-nos. Botticelli avisa-nos, Goya parece espiar-nos como "quem não quer a coisa". Este auto-retrato de que estamos a falar e que apresentamos aqui em baixo prefacia Os Caprichos que como nos sabemos são uma imagem cruel da violência humana, da avareza e da insanidade. O perfil coloca o auto-retrato na terceira pessoa; ou seja há o autor de nome Señor Goya como está escrito em baixo, intitulando-se assim como o "autor" ou o "pintor". Não é ele o autor, mas sim Goya. Se repararmos no rosto dele vemos que ele pode ser o autor, o narrador dos Caprichos, mas não deixa de ser um humano e como tal inscreve-se no mesmo círculo de vilões que povoa essa obra. E coloca-nos no mesmo saco.

Francisco de Goya
Self-Portrait
1799
Museo del Prado, Madrid

8 Comments:

Blogger alma said...

Muitos parabéns Miss Beluga.

20/9/10 12:59 da tarde  
Blogger AM said...

esse chardin é um achado

20/9/10 7:07 da tarde  
Blogger Belogue said...

Ai Alma, Alma... se soubesse como me tenho lembrado de si. Ainda ouço as suas palavras quando me dá para chorar, mas elas parecem-me cada vez mais longínquas e cada vez menos feitas para mim. Não é que eu seja especial, mas não consigo chegar lá... percebe?

Caro AM:
Eu gostei mais do Tintoretto e do Goya.

22/9/10 12:48 da manhã  
Blogger alma said...

Querida Beluga,
Não,não percebo!

é
bonita,
elegante,
muito inteligente,
carismática,
e com tanta humildade
é uma raridade ...
não há nada a temer
para a frente é o caminho
será uma sorte para quem a apanhar..

23/9/10 12:01 da manhã  
Blogger alma said...

The delicate taste of beluga
a sequência dos retratos está extraordinário

os PHD´s que se cuidem

23/9/10 11:19 da manhã  
Blogger Belogue said...

Cara Alma:
Não me faça corar. (ainda bem que não me podem ver agora!)
eh pá (desculpe)... não sei como chegar lá. ele vê-me como uma miúda, acho que sempre viu assim e eu não consigo ser mais, digamos, expressiva sem cair no ridículo.

Quanto à sequência dos retratos, como deve saber é a autora que os sugere. Alterei algumas coisas e não partilho da opinião dela em alguns aspectos, mas quem sou eu...

23/9/10 1:45 da tarde  
Blogger Belogue said...

o que eu queria mesmo era que ele gostasse.

23/9/10 1:46 da tarde  
Blogger alma said...

Beluga,
Ser ou parecer uma miúda é uma vantagem (smile)
os homens
gostam de miúdas (lolitas)

só as cartas de amor é que são ridículas
LOL
(Todas as palavras esdrúxulas,
Como os sentimentos esdrúxulos,
São naturalmente
Ridículas.) FP

seja ridícula

24/9/10 12:04 da manhã  

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