quinta-feira, junho 21, 2007

- não vai mais vinho para essa mesa -


Van Gogh
Fifteen Sunflowers in a Vase

1888
National Gallery, London

Quando a minha idade era outra que não esta o meu pai disse-me enquanto afagava o copo e fazia o vinho rodar nas paredes do mesmo até chegar ao bordo, que havia dois tipos de mulheres: "aquelas com que casamos e aquelas com que desfrutamos". Pai dixit. Estávamos nas mesas do café da terra, a ver as mulheres que saiam da missa entre a responsabilidade do véu negro e a vaidade de tirá-lo. Na minha opinião de recém iniciado no mundo tumescente dos prazeres carnais na Gaiola Dourada, casa de umas amigas assim apelidada porque dentro dela estavam as passarinhas, a coisa não devia ser bem assim. As passarinhas faziam-se rodear de muitos pavões e de vez em quando, um milhafre que levava a poupança de uma, as lágrimas da outra, o que restava do coração de uma terceira. Como qualquer ave, as passarinhas assim criadas em cativeiro eram para "papar", servidas na mesa já trinchadas, as mais velhas e mais rijas, ou numa canjinha, no caso das mais novas.

Um dia, quando a minha mãe (criatura enfezada mas uma santa) saiu para a missa sem o véu porque era igualmente avançada, vaidosa e seguia as modas, o meu pai recebeu uma visita. Foi ele quem abriu a porta. Não a vi entrar, mas segui o som da conversa e fui parar à cozinha velha. Mal dava para vê-los pois os anos e anos que o forno a lenha cuspiu fumo preto para o espaço exíguo e com uma abertura minimal no tecto, tinham feito os seus estragos. No entanto consegui ver a mulher de quem se podia desfrutar. Não era muito diferente da minha mãe na compleição. Igualmente magra, nem bonita nem feia. Poderia passar por mulher para casar. Mas vista com mais atenção, havia nela um ar de predador, uma característica muito dissimulada pelos olhos fleumáticos. Um cheiro de quem não tinha nada a perder, uma postura involuntariamente provocadora, um jogo de palavras intrincado. Disse ela:
- Tens de ter cuidado, foi só para te dizer isto que vim aqui. Vai ao médico e tem cuidado.
- Sua rameira! Quer dizer, dormes comigo que desde sempre fui limpinho, esterilizado até, e não apanhas nada. E como se eu não te bastasse, dormes com outros. Com esses, esses, boémios...
- É esse o maior insulto que consegues fazer? Caramba, perto de ti Jesus precisa de lavar a boca.
- Não te chegava o que tínhamos?
- E a ti, não chegava o que tinhas?
- Mau, mas estamos a falar de quem? Quem é que traiu quem?
- Não há traições nenhumas. Ninguém "se pertence".
- Mas tu bem querias... Pôr-me uma coleirinha, levar-me para casa. Eu já tenho mulher.
- Por acaso não se diz coleirinha, mas antes anilha. E sim, eu bem queria. Não isso, mas outras coisas. As boas e as más. E tu não querias. Só te vim avisar. Não pegues isso à tua mulher.
- Não fales da minha mulher.
- Como querias. Não pegues isso à senhora com quem te deitas quando não te deitas comigo. Adeus.
Virou costas, passou rente ao meu pai que ainda ficou com o nariz espetado a seguir-lhe o cheiro e passou por mim. O meu pai saiu em seguida da cozinha e caminhou para fora da casa na direcção oposta. Ia para o campo. Tinha de dizer alguma coisa à mulher, mas foi ela que me disse quando estava a fechar a porta da rua:
- És o filho dele?
Fiz que sim com a cabeça.
- És parecido. Concordas?
- Dizem que sou mais parecido com a minha mãe.
- Talvez.
- É verdade aquilo?
- O quê?
- O meu pai diz que há dois tipos de mulher, aquelas com que casamos e aquelas de que desfrutamos. Eu só conhecia a minha mãe...
- Percebo. Eu sou a segunda parte do raciocínio do teu pai.
Fiz novamente que sim com a cabeça.
- Às vezes a vida mistura as coisas um bocadinho para isto não ser tão monótono.

1 Comments:

Blogger João Barbosa said...

As verdades sábias dos pais... ;-)

21/6/07 12:36 da tarde  

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