quarta-feira, junho 20, 2007

- o carteiro -

Zwartboek
O filme de Paul Verhoeven "O Livro Negro" que já há muito estreou em Portugal recebeu do Festival de Veneza as melhores referências, e dos críticos as mais estranhas: que o filme era uma mistura do corpo morto com o corpo vivo, o eros e o tanatos, um abuso de sexo e violência e quase uma heresia por a personagem da actriz principal se chamar Rachel; ou seja, mãe de Israel. A personagem socorre-se dos seus atributos físicos para escapar sempre com vida das situações mais improváveis.
É uma história sobre a Segunda Guerra Mundial, mas não é a Segunda Guerra Mundial de Spielberg, nem de Roberto Benigni, nem de Oliver Hirschbiegel. Não é a história dos judeus pobres que morreram no Holocausto, nem a história dos judeus pobres que encararam com humor o Holocausto, nem a história dos últimos dias do humano ditador. Só a dimensão humana que Hitler possuia pode legitimar a nossa intolerância perante a ideologia nazi. A tolerância não pode ser conivente com os aspectos mais simpáticos da intolerância. É uma história hollywoodesca, uma vez que há um certo glamour próprio do tema, mas também porque a jovem e bonita Rachel nunca é apanhada, nunca é ferida, nunca desconfiam dela. É fantasista a forma como só a rapariga sai viva do barco de judeus ricos, como consegue sair do rio, como é aceite numa comunidade desconfiada, como o jogo se inverte sempre em momentos periclitantes, enfim, como há sempre uma saída para ela. Talvez seja por Rachel ser mulher e a fotografia que ilustra este post é bem exemplificativa: sem medo quase nenhum enfrenta os inimigos tendo como única arma o corpo. Poderia até ser pornográfico, um exagero, uma mistura de sexo e morte sem sentido, mas Verhoeven incluiu no filme outro elemento: o sentimento. E a vulgar judia que aparentemente dormiria com a armada espanhola se isso lhe salvasse o lindo rosto, dá lugar a uma mulher muito mais completa. Muito bem conseguida a cena no quarto do oficial nazi em que descoberta e quando inquirida sobre se era judia, Rachel diz já despida levando as mãios do oficial ao seu peito: "este peito parece-lhe o peito de uma judia?". E por aí em diante com o resto do corpo. Não é uma pergunta, é uma confirmação: ela seria menos mulher, menos desejável se fosse judia? Houve nesta cena uma aproximação ao que escreveu Shakespeare no livro "O mercador de Veneza", que também aborda o anti semitismo e a carne humana como moeda de troca. É também a história de uma guerra em que a fronteira entre o lado dos bons e o lado dos maus ficou mais difusa. A viragem do jogo, a mudança do vento tanto joga a favor de Rachel como dos nazis e no fim de contas, o que era ela senão uma pessoa, nazi ou não, que queria sobreviver, e aproveitar enquanto tal fosse possível. Na guerra, como no amor, vale tudo.