terça-feira, junho 29, 2021

- o carteiro -

Proust e os seus modelos (Não sei se existe um livro com este título. Se não existe, devia existir.)

Para cada uma das personagens da Recherche, Proust usou modelos da "vida real" aos quais juntou alguma imaginação. Colocou os modelos e a imaginação no shaker et voliá: personagens como Swann, o barão Charlus ou a duquesa de Guermantes, Odette de Crecy e outros que já referi em posts anteriores aqui.
A duquesa de Guermantes teve modelos que Proust conheceu. Parte da construção da duquesa de Guermantes parte da realidade. A outra parte é da imaginação de Proust e resulta tão bem, que para saber onde acaba a realidade e começa a ficção (ou vice-versa) tive de fazer um esquema. Sempre me foi difícil perceber o fascínio de Proust com a aristocracia. Ainda me é. A sua adulação, as suas tentativas ridículas de fazer parte dos salões da nobreza... talvez fossem a expressão de um tempo, da sua condição e do seu temperamento. Proust era filho de um médico católico e de uma judia, bem postos na vida. Eram burgueses, como eram aqueles que construíram o espírito da Belle Époque, com os progressos tecnológicos, culturais... Sociais, menos. Foi nesta época que anti-semitismo começou a varrer a Europa. Apesar da burguesia ser parte essencial desta sociedade, não usufruía naturalmente da companhia da aristocracia. Proust frequentou, como muitos outros - como Delacroix, por exemplo - o Lycee Condorcet, escola para filhos de famílias proeminentes, mas não propriamente aristocratas. Era um rapaz inteligente, muito ligado a Maman e com um fascínio pelo muito que lhe estava vedado. Quando tinha crises asmáticas, era maman que o instruía em casa. Entre eles criou-se uma cumplicidade que se nota no primeiro volume da Recheche, na cena em que Marcel criança tem de deixar a sala para se deitar e "arma" um pequeno teatro para que a mãe lhe venha dar o último beijo. Em casa, com ela, Proust fazia trocadilhos com citações de autores que ambos liam e nisso residia a sua cumplicidade. Era também muito aborrecido, segundo os seus colegas de escola que admiravam os seus conhecimentos, mas não o facto de ser irritante. E aqui temos: o tempo (Belle Époque e advento do anti-semitismo em grande), a condição (família burguesa), o temperamento (um wannabe, aborrecido que se dá à preguiça e persegue obsessivamente as mulheres que admira).

Uma das mulheres que influenciou a composição da Duquesa de Guermantes foi Genevieve Bizet Straus, mãe de um dos colegas de Proust aquando da passagem pelo Condorcet, e tia de outro. Genevieve não era um membro da aristocracia, mas era como se fosse e exercia na aristocracia o mesmo fascínio que a aristocracia exercia na burguesia, e em Proust em particular. Genevieve era filha do compositor francês Fromental Halevy criador da ópera "La juive" (A Judia) e viúva de Bizet, compositor da ópera Carmen, para a qual foi modelo. De Halevy já ninguém se lembra, mas era conceituadíssimo no seu tempo. É à sua ópera "La Juive", e a uma ária em concreto, que Proust vai buscar a expressão "Raquel, quando do Senhor", para se referir à amante do seu amigo Saint Loup. 













Quanto a "Carmen", apesar de não ter sido bem recebida, foi uma obra recuperada após a morte de Bizet. Genevieve torna-se assim a orfã de um mestre e a viúva de uma estrela, a herdeira do legado dos dois compositores. E sabe como fazer a sua imagem lucrar com isso: é pintada por Degas e por Jules-Elie Delaunay no seu luto - e este retrato foi apresentado em inúmeras exposições o que contribuiu para que a sua história se tornasse mais conhecida e Genevieve ganhasse uma aura que muito agradava a aristocracia. Começou pois a ser convidada a frequentar as "altas esferas", algo que era muito raro acontecer com uma burguesa e/ou judia. Genevieve teve também o seu próprio salão onde Degas estava presente, bem como Charles Haas (um dos modelos de Proust para Swann), Guy de Maupassant (com quem Genevieve, alegadamente, teve um romance) e, claro, Proust, embora Proust nunca tenha sido convidado, nem uma única vez, para os salões frequentados pelas cabeças coroadas.






Curiosidade: Genevieve casou com Emile Straus, um homem muito rico, filho ilegítimo do barão de Rothschild. Não o amava e os seus amigos também não morriam de amores por ele. Mas mantê-lo perto era a única maneira de mantê-lo a uma distância razoável. Proust chama a esta forma de agir - que aplica à duquesa de Guermantes/Princesa des Laumes - o espírito Halevy, numa referência clara a Genevieve:

"Dava assim a muitas pessoas a alegria de acreditarem que fazia parte de suas relações (...) Além disso, fazendo parte daquela espirituosa casta dos Guermantes onde sobrevivia algo do espírito alerta vivo, despojado de lugares-comuns e de sentimentos convencionais, que descende de Mérimée e encontrou sua última expressão no teatro de Meilhac e Halévy, ela adaptava-o até relações sociais, transpunha-o mesmo para a sua delicadeza, que procurava ser positiva, precisa aproximar-se da humilde verdade."

(PROUST, Marcel - Em Busca do Tempo Perdido: Do Lado de Swann, Lisboa: Relógio d'Água, 2003, pp 349 - 350)

No excerto acima, quando o narrador refere o "teatro de Meilhac", a referência não é despropositada. Genevieve era amiga de Meilhac, o libertista que havia trabalhado com o seu pai (Halévy) e com o falecido marido (Bizet). Ele era um fã de coração e ela achava-lhe graça: Meilhac era obeso, tinha a cara bolachuda, não conseguia calçar-se sozinho e ía com Genevieve para todo o lado, ora tornando-se um montanhista quando nos Pirinéus, ora um marinheiro de água doce quando num SPA num lago na Suíça. 














Jules-Élie Delaunay
Portrait of Mme Georges Bizet
1878
Musée d'Orsay, Paris

Apesar da sua obsessão com os salões da aristocracia e, no caso de Genevieve que não era aristocrata, das pessoas com o seu... allure, Proust não era um membro querido destes clubes, destas reuniões. Genevieve recebia-o, mas não conseguia estabelecer com ele uma verdadeira relação. Proust encantou-se com ela, escreveu-lhe algumas propostas atrevidas, mas nunca passou de um admirador que Genevieve tolerava. Quando soube do seu caso amoroso com Guy de Maupassant, Proust desiludiu-se e - pelo mesmo meio, a escrita - deixou claro que pensava que Genevieve era uma snob. Proust incorporou as críticas a Genevieve na Recherche, contando de outra forma um episódio em que estava envolvido e que mostrava o carácter de Genevieve. Um dia, indo buscar o casal Straus para sair - numa das raras ocasiões em que Genevieve abandonou o luto vestindo-se de vermelho - foi convocado pelo marido de Genevieve para descer da carruagem e entrar novamente em casa deles para trazer os sapatos vermelhos de Madame Straus, mais adequados à toilette do que os pretos. Proust coloca-os numa cena deplorável da Recherche em que Swann procura os Guermantes para lhes dizer que está muito doente, em fim de vida, mas estes, de saída para uma soirée, só se preocupam em não chegar atrasados e com a toilette a condizer:

"(...) o duque exclamou numa voz terrível: «Oriane, que vai você fazer, infeliz? Ficou com os sapatos pretos! Com uma toilette encarnada! Suba depressa para calçar os sapatos encarnados (...)»" (PROUST, Marcel - Em Busca do Tempo Perdido: Do Lado de Guermantes, Lisboa: Relógio d'Água, 2003, pp 597)
 
No salão de Genevieve Proust conhece membros da aristocracia, como Laure de Sade (Laure de Sade, ou Laure de Chevigné, foi bisavó de Philippe de Montebello, o conhecido director do Metropolitan Museum durante cerca de 3 décadas). É no Met que se encontra este retrato (reproduzido somente a preto e branco, não sei porquê), de Laure de Chevigné:

  











Federico de Madrazo y Ochoa
Laura de Sade, Comtesse Adhéaume de Chevigné
1895-1934
Metropolitan Museum of Art, Nova Iorque

Laure foi o modelo físico para a criação de Oriana, duquesa de Guermantes: olhos azuis, pele pálida e frágil (com rosáceas), nariz ligeiramente arrebitado e cabelo entre o loiro e o ruivo:

"De repente, durante a missa de casamento, um movimento do suíço deslocando-se do seu lugar permitiu-me ver, sentada numa capela uma senhora loira com um grande nariz, olhos azuis e perscrutantes, um lenço de pescoço tufado, de seda rosa-malva, lisa, nova e brilhante, e um pequeno sinal ao canto do nariz. E, visto que na superfície de seu rosto vermelho, como se o tivesse muito quente, distinguia, diluídos e a custo perceptíveis, parcelas de analogia com o retrato que me haviam mostrado, visto que, sobretudo, os traços particulares que nela notava, se tentasse enunciá-los, se formulavam precisamente nos mesmos termos - um grande nariz, olhos azuis - de que se servira o Dr. Percepied quando descrevera à minha frente a duquesa de Guermantes, disse de mim para mim: «Esta senhora parece-se com a senhora de Guermantes»; ora, a capela onde ela seguia a missa era a de Gilberto, o Malvado, sob cujas lápides tumulares, douradas e frouxas como alvéolos de mel, repousavam os antigos condes de Brabante, e que eu recordava ser, segundo me tinham dito, reservada à família de Guermantes quando algum de seus membros vinha assistir a uma cerimónia em Combray; era provável e verosímil que ali, naquela capela, houvesse apenas uma única mulher parecida com o retrato da Sra. de Guermantes, naquele dia em que precisamente ela era para vir; era ela!" (PROUST, Marcel - Em Busca do Tempo Perdido: Do Lado de Swann, Lisboa: Relógio d'Água, 2003, pp 184 - 185)

Como o nome indica, Laure de Sade era descendente do Marquês de Sade, cujas práticas sexuais defendidas em livro, escandalizaram a França. Apesar de Laure ser aristocrata de nascimento e por casamento, por vezes gostava de dar asas ao lado do seu bisavô e por isso frequentava locais como o Le Chat Noir, não aconselháveis para a sua condição. Tanto quanto é possível apurar algo deste género, Laure foi a primeira mulher da sociedade a dizer a palavra "merda" em público. Laure é uma das grandes damas da sociedade parisiense que Proust segue, desde novo, só para lhe admirar a beleza, para perceber todos os pormenores que fazem de Laure, Laure: os seus véus, os locais a que se desloca, a forma como caminha. Um dia Laure vê Proust (Proust seguia-a) e dirige-lhe palavra em forma de advertência: "Os Fitz-James esperam-me". Fitz-James era tudo o que Proust não era: nobre, de um sangue límpido nunca maculado, com mais títulos que a rainha de Inglaterra, tal como era imaculado o sangue dos Guermantes, já que o duque a duquesa eram primos. Esta advertência de Laure de Sade é usada na Recherche:

"- O meu tio-avô Fitt-jam" nada tinha para admirar, porque é sabido que os Fitz-James gostam de proclamar que são grandes senhores franceses e não querem que lhes pronunciem o nome à inglesa." (PROUST, Marcel - Em Busca do Tempo Perdido: A Prisioneira, Lisboa: Relógio d'Água, 2003, p.31)

Mas mais do que aquilo que Laure disse, importa reter como disse. Proust ficou chocado com a realidade: Laure tinha uma voz cavernosa de quem fumava em demasia, algo que fazia para continuar a manter a linha, uma preocupação que a consumia. Também a duquesa de Guermantes mostra uma constante preocupação com a gordura, com a aparência das outras mulheres, até porque o seu marido, Basin, não se coíbe de fazer comentários à imagem destas. 

"- Ora, Basin, sabes bem de quem a minha tia quer falar - exclamou a duquesa com indignação -, este é o irmão daquela enorme herbívora que você teve a estranha ideia de mandar visitar-me no outro dia. Ficou uma hora, e eu pensei que enlouquecia. Mas comecei por acreditar que ela é que tinha enlouquecido quando vi entrar na minha casa uma pessoa que eu não conhecia e que parecia uma vaca. 
- Oiça, Oriane, ela tinha-me perguntado qual era o seu dia; e eu não podia cometer uma grosseria; e disso, bem, você está a exagerar; ela não parece uma vaca - acrescentou com ar lamentoso, mas não sem lançar um sorridente olhar furtivo à assistência." (PROUST, Marcel - Em Busca do Tempo Perdido: Do Lado de Guermantes. Lisboa: Relógio d'Água, 2003, p. 232)

Curiosidade: Laure era amiga dos Romanov e recebia da grã-duquesa algumas jóias. Jóias a sério! Pedregulhos! Tanto que Laure gostava de se passear nos seus círculos menos aristocráticos com as jóias penduradas nas orelhas, no pescoço, nas mãos e dizer "desculpem, eu sei que é demasiado, mas estes rubis foram oferecidos pela grã-duquesa..." E Proust vai buscar esta petite histoire para um episódio da sua Recherche, no qual a duquesa de Guermantes se queixa dos seus rubis serem tão exagerados:

"- Que magníficos rubis!
- Ah, Charles, meu anjo, ao menos vê-se que é conhecedor, não é como aquele bruto do Monserfeuil, que me perguntava se eram verdadeiros. Devo dizer que nunca vi outros tão lindos. É um presente da grã-duquesa. Para meu gosto são um pouco grandes, um pouco cálice de bordéus cheio até acima, mas pu-los porque esta noite vamos ver a grã-duquesa em casa da Marie-Gilbert(...)" (PROUST, Marcel - Em Busca do Tempo Perdido: Do Lado de Guermantes. Lisboa: Relógio d'Água, 2003, p. 585)

Um outro modelo para a criação da duquesa de Guermantes foi Elisabeth de Caraman-Chimay, viscondessa de Greffulhe. Esta mulher era uma personagem digna de um livro só para ela (acho até que há um livro sobre ela): desenhava as suas roupas, sabia quais as melhores poses, encenava as suas chegadas às festas onde havia cabeças coroadas. A etiqueta dizia que todos os convidados deviam chegar antes da entrada do nobre, mas ela chegava sempre cerca de 15min depois. Fazia uma entrada em grande, a retirar, afogueada as penas e os tules do rosto e dos ombros... e depois desaparecia na multidão, para se tornar ainda mais apetecível. Foi provavelmente a pioneira das Princesas Dianas dos nossos dias. Apesar de ter casado com um homem muito rico que lhe deu a posição de condessa por casamento, foi por ele traída sucessivamente, com praticamente todas as mulheres de Paris (teve cerca de 300 amantes). Ele só deixava a esposa sair com companhia familiar; ela saía com o tio Robert de Montesquiou-Fezensac, também chamado de qualquer coisa como "grande cabeça de tijolo" e modelo de Proust para a construção do Baron de Charlus. Para compensar as traições do seu marido e a forma tirânica como ele a tratava, esticizava toda a sua existência, apresentado-se por vezes como Vénus, como herdeira directa da coroa francesa (quando usa um vestido bordado com flores de lis), como a rainha da aristocracia francesa. Este quadro mostra-a como Rainha da Noite da Flauta Mágica de Mozart. E quem é que lá está também? Charles Haas como cortesão do Renascimento, ambos vestidos a rigor para o baile de máscaras da Princesa de Sagan:

Eugène Louis Lami
Study for a painting of a costume ball given by the Princess of Sagan
1883
Walters Art Museum, Baltimore














Philip Alexius de Laszlo
Élisabeth, Condessa de Greffulhe
1905

Penso que Proust foi buscar a vida, a história, a aparência da condessa de Greffulhe porque nela viu a ironia: a mulher mais bonita de Paris, a mais desejada... traída pelo seu marido com todas as outras mulheres. Ela sabia disso. O comportamento impróprio do marido começou logo pela lua-de-mel, quando os noivos e as suas famílias se instalaram numa propriedade rural para caçarem. Os diários da condessa mostram as marcas das suas lágrimas na tinta ao escrever que descobriu que as longas ausências do marido durante a tarde se deviam às visitas que ele prestava à amante, mulher de um amigo do casal, hospedada numa propriedade ali próxima. Proust refere não só a questão da caçada:

"Às vezes, no Outono, entre as corridas de Deauville, as águas e a partida para Guermantes e as caçadas, nas poucas semanas que se passam em Paris (...) o duque lá ia com ela passar um serão." (PROUST, Marcel - Em Busca do Tempo Perdido: Do Lado de Guermantes. Lisboa: Relógio d'Água, 2003, p. 482)

Como também a das traições:
"E os espectadores bem podiam acreditar que não havia melhor marido que ele, nem pessoa mais invejável que a duquesa - aquela mulher para além da qual residiam para o duque todos os interesses da vida, aquela mulher que ele não amava, que nunca cessara de enganar..." (PROUST, Marcel - Em Busca do Tempo Perdido: Do Lado de Guermantes. Lisboa: Relógio d'Água, 2003, p. 483)

Curiosidade: Élisabeth Greffulhe é descrita pelo jornal Le Figaro da mesma forma que Proust descreve a lenda dos Brabante; ou seja, como a aparição através de uma lanterna mágica:

"Elle a le goût pour les fêtes originales qui s'éncartent de la banalité courante. C'ést ansi que ses invités ont eu la joie d'applaudir une lanterne magique comme on n'en avait jamais vu", Le Monde illustré (Janeiro 10, 1891)











Já sabemos que Proust utilizou as suas vivências, os seus conhecimentos para construir as personagens da Recherche. O que não se nota tão frequentemente é o recurso ao misticismo, às lendas, ou às fantasias para moldar personagens. Isso acontece com Oriane de Guermantes, mais do que com qualquer outra personagem na obra. No primeiro volume, quando o narrador projecta nas paredes do quarto as imagens que a lanterna mágica guarda, esta revela-lhe as aventuras de Genoveva de Brabante e Golo, que ele tem como antepassados da Duquesa de Guermantes. Ou seja, o narrador usa personagens lendárias para fundamentar a natureza mística dos senhores de Guermantes:

"... para me distrairem nas tardes em que me achavam com um aspecto por demais infeliz, de me darem uma lanterna mágica com que cobriam o meu candeeiro até à hora de jantar (...) Golo, habitado por um pavoroso desígnio, saía da pequena floresta triangular que aveludava de verde sombrio a encosta de uma colina, e avançava aos solavancos para o castelo da pobre Genoveva de Brabante. Esse castelo recortava-se segundo uma linha curva, que não era senão o limite de uma das ovais de vidro colocadas no caixilho que deslizava entre as ranhuras da lanterna." (PROUST, Marcel - Em Busca do Tempo Perdido: Do Lado de Guermantes. Lisboa: Relógio d'Água, 2003, p. 15-16)

"Julgo lembrar-me que se falava de Guermantes. E excepcionalmente eu estava com os outros contra ela, não podendo admitir que houvesse uma ligação entre a sua amiga do internato e a descendente de Genoveva de Brabante." (PROUST, Marcel - Em Busca do Tempo Perdido: Do Lado de Guermantes. Lisboa: Relógio d'Água, 2003, p. 112)

Boltei a Proust. Estou a ler a Recherche. Até ao meu regresso, ficainde bem e num bos isquéceindes de mudar a água ao bacalhau.

3 Comments:

Anonymous Pedro said...

Li com gosto e proveito. (Desta vez li até ao fim, apesar de o post ser bastante longo).
É curioso que apareça aqui uma referência ao marquês de Sade (por intermédio de uma sua descendente afastada, do sexo feminino, Laure de Sade, condessa de Chevigné pelo casamento e «arrière-petite-fille de Laure de Noves, petite-nièce du marquis de Sade»). Faz-me pensar sobre qual será verdadeiramente a relação da obra de Proust com os eventos da sua vida real. Um misto de imaginação e de modelos retirados de pessoas reais, pessoas com que conviveu, de que recorda e reaproveita episódios, como já se disse aqui. Mas terá existido realmente a cena retratada no 1.º volume, “em que Marcel criança tem de deixar a sala para se deitar e arma um pequeno teatro para que a mãe lhe venha dar o último beijo”? Ou a das imagens da lanterna mágica, que ele à noite “projecta nas paredes do quarto”?
Há muitos anos, numa aula de Estética, discutia-se a relação do marquês de Sade com a sua obra. Toda ela (ou quase) feita de suplícios, mais do que imaginados, imaginários. E no entanto poderia haver ali um lastro de autenticidade, de “realismo”. Por outras palavras, discutia-se se Sade era realmente sádico.
“A obra até certo ponto retrata uma realidade, já que Sade era mesmo assim”, disse alguém. “Não, respondeu o professor, aliás esse é um problema que desde Hegel já não se põe” (Até hoje ainda não percebi o que é que ele quis dizer com isso do Hegel, talvez “a obra como expressão sensível da ideia”, etc.).
E acrescentou: “Se ele fosse assim… para que precisava da obra?”

26/7/21 5:40 da tarde  
Blogger Belogue said...

Chiça! Finalmente alguém que lê!

Gostava de fazer um mapa/esquema onde fosse possível ver como a realidade e a ficção se misturam em Proust. Para isso as cartas e obras como Jean Santeuil são fundamentais. Enfim, acho que seria o trabalho de uma vida. Há uma coisa que sei em relação a Proust e estas mulheres: ele não se dava com elas, não era das relações de nenhuma delas. Nem mesmo de Genevieve que parecia tolerá-lo nas suas reuniões, mas não mais que isso. E o mais curioso é que Proust nunca quis aprofundar essa relação. Por exemplo: um dia Proust estava doente, em casa, e Genevieve passou por lá para saber notícias dele. Proust não a convidou a entrar, nunca a convidou a entrar. Quem conta isto é a empregada do escritor que serviu de inspiraçâo à personagem da Françoise.

Das aulas de Estética não me lembro de nada. Nessa altura estava tão medicada... Nem me lembro de lá estar. Dou só uma "resposta" à sua pergunta:
"Porque era ele, porque era eu" (Chico Buarque).
Boa noite!

27/7/21 10:04 da tarde  
Blogger Pedro said...

Boa tarde, Beluga
Certamente que há muita gente que lê, mas nem toda a gente comenta (ou nem sempre comenta).
Sobre as aulas de estética, eu estava a referir-me às minhas aulas de Estética, em finais da década de 1980, o professor chamava-se Alvaro Lapa.
O episódio da Genevieve que Proust não convidou a entrar parece ir no mesmo sentido do "se ela existisse, para que seria preciso criá-la?" Para que acontecesse (ou se repetisse) a epifania Mme. de Guermantes, melhor que a Genevieve se pusesse a andar.

Os meus parabéns pelo seu blog, que resiste e persiste. E continua a agradar.
Pedro

28/7/21 4:11 da tarde  

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