- o carteiro -
paz, pão, habitação, saúde, educação
de uns já falei (pão e saúde), de outros não. Acrescentaria "trabalho", mas nem vale a pena falar disso. Falo por isso da habitação. Depois de deixar a casa dos meus pais - nem sempre de forma definitiva pois os "tempos foram de coruja", vivi em várias casas e com gente muito diferente. A minha primeira casa era muito fria e partilhada entre mim, a Rita, a Jenny e a Paula e o Miguel que eram um casal de namorados. A Paula trabalhava à noite num bar e o Miguel… bom, ninguém sabia de que é que o Miguel vivia. Era um militante activo da Juventude Comunista, tão activo que trazia para a cozinha, quando nas noites de Inverno se cozinhava de anorak e se jantava de anorak, discussões sobre a superioridade moral do comunismo. A Jenny que era filha de imigrantes na Venezuela não se deixava ficar. O tipo por vezes perdia um bocado o "fio à meada" pois estava, frequentemente, sob o efeito de grandes "brocas". Um dia cheguei à cozinha e ele tinha transformado aquilo numa fábrica de "sabonetes". Só pensava na polícia. Como é que eu ia dizer à polícia que não sabia que no sótão da casa que habitava havia uma estufa de canábis e que tudo ali, não obstante os espanta-espíritos e o tye dye, não cheirava a ganza, mas a incenso? É que nem disfarçava: logo à entrada havia um vaso! O Miguel devia estar sempre, mas mesmo sempre sob a influência do próprio produto. Devia ser para aperfeiçoá-lo. Um dia entrou no meu quarto, como um D. Sebastião envolto na sua própria nuvem de fumo, e disse: "sabes, o meu primo entrou aqui um dia destes e sentiu uma vibração estranha. tu tens algum segredo, alguma coisa que queiras que não se saiba?". respondi que sim, que tinha várias. várias coisas que não queria que nem ele nem o primo soubessem. porque uma pessoa tem de ter as suas coisas que não quer que ninguém, nem os primos de ninguém, saiba. Ele não ficou convencido e voltou à carga: "uma tragédia, um drama… uma tristeza". "Oh yeah" - "podes crer". Só me lembrava do Samba da Benção... Já me bastava ter de gramar com as sessões de musicais como o Moulin Rouge no computador da Rita. Não tinha coragem de lhe dizer que não gostava de musicais nem da Nicole Kidman… Nessa altura ía muito ao cinema. Papei "Dancer in the dark", "O Irreversível", "Habla com Ella"... Todas as quintas à noite. Trabalhava numa fábrica e dormia todo o fim-de-semana. Pelo menos tinha um…
Depois, não sei bem porquê, eu "mai-las" minha companheiras mudámos para outro apartamento não muito longe dali. Era um apartamento enorme, com uma ilha no centro do mesmo e na qual se localizava a cozinha. Era pois possível andarmos à volta da casa sem nos encontrarmos: "onde estás?", "estou na casa-de-banho", "na grande ou na pequena", "na pequena", "não saias daí". O meu quarto era o mais pequeno, mas tinha uma varanda que, segundo idealizei, seria para receber os amigos e tomar chá. Claro que isso nunca aconteceu. Limpar aquele apartamento era um suplício: uma tarefa a três e que demorava um dia. Porque nós éramos muito limpinhas. A senhoria era bastante faladora e era a Jenny, com a sua paciência de Job, quem lhe interpretava a caderneta da Caixa. Eram tantas rendas que a senhora, tal como o Miguel, também perdia o "fio à meada".
Foram tempos difíceis: a morte da Liliana, o Mestrado sem rumo e sem orientador, o final do estágio… até que cada uma seguiu a sua vida. A cidade deprimia-nos. Deixá-la deprimia ainda mais.
Até que surgiram outras oportunidades. Dizem que há "tempos de águia e de coruja". Os "de águia" nunca foram realmente "de águia", mas dava para esticar as asas e praticar o voo um pouco. Fui viver com mais 4 raparigas: a Liliana, a outra Liliana, a Mónica e a Rita (outra Rita). As duas Lilianas dormiam no mesmo quarto, eram estudantes e gostavam daquela fanfarronada das tunas e das serenatas. Lembro-me que uma delas pedia várias vezes ao namorado, ainda que indirectamente, que este lhe fizesse uma serenata. Um dia ele apanhou uma piela e lá lhe fez a vontade! A rapariga - que foi a primeira pessoa que conheci com um brilhante no dente - chorou. Como chorou! Para ela, aquilo era o pináculo da existência. Quando a Mónica saiu, entrou a Magda. A Magda, para além de trabalhar, estava a escrever a tese de Mestrado em Relações Internacionais - se não me engano - sobre algo muito interessante (que agora não recordo). Mas havia nela algo estranho. No dia dos meus anos, após cantarmos os parabéns e soprarmos as velas, após cortarmos o bolo e no meio da conversa, falou-se de desilusões "del corazón". E a Magda quebra. Começa a chorar "baba e ranho" e à medida que vai revelando mais e mais pega na faca usada para cortar o bolo e agita-a no ar, com o muco a sair-lhe de uma narina, os olhos negros do eyeliner esborratado, as lágrimas em torrente e a saliva acumulada nos cantos da boca. Já estava a imaginar a notícia no Correio da Manhã: "Descoberta macabra em apartamento em X - 4 mulheres entre os 18 e os 25 anos foram assassinadas pela colega de casa que se apresentou nua, porém coberta de sangue, na esquadra local. Os motivos da chacina são ainda desconhecidos das autoridades".(Não sei se o Correio da Manhã conseguiria fazer aquela piada do "nua, porém coberta". Quero acreditar que como homenagem póstuma, sim). O meu quarto era mais uma vez o mais pequeno e desta vez com duas particularidades: uma cama como a de Procusto (pequena em todos os sentidos, até para os meus padrões) e uma janela com uma frincha crónica. Fazia noventa piscinas três vezes por semana, entre às 21 e as 22h. Esse era o pináculo da minha existência por esses dias. Para quem não gosta de serenatas, não está mau como pináculo.
Farta daquele ambiente académico, mais infantil que boémio, resolvi mudar. Eu e a Rita fomos então para outro apartamento muito jeitoso. O que gostava naquele apartamento era o silêncio: quando acordava à noite ("in the wee small hours of the morning") e ia até à varanda ver a cidade a dormir e pensar em… coisas. Uma espécie de pináculo. Cada um tem os seus. Por essa altura adicionei à natação, a corrida, ambas de manhã, entre as 7 e as 8h, mais coisa menos coisa. Para nadar preferia o silêncio e para correr a Beyonce. Quantas vezes não escapei a ser atropelada por ir a ouvir música pop... Conclusão: a pop pode matar. Às vezes eu e a Rita íamos dançar Lindy Hop e danças do mundo com um colega de trabalho dela. Outras vezes íamos só às compras, adquirir roupa que, no nosso pleno juízo, jamais compraríamos. Também íamos ao cinema, mas não concordávamos no que ver. Ficámo-nos por isso pelas compras de roupa. Nunca tive tanto por onde escolher. Tinha um trabalho de que gostava bastante, mas foi por essa altura que soube que o Rui tinha sido pai e isso deitou-me ao chão. Trabalhar passou a ser uma tarefa; dormir, o consolo. Quer dizer… não dormia no chão. Aliás, pela primeira vez em vários anos tinha uma cama grande, para rebolar para o lado fresco quando estava calor e ficar com a sensação de prosperidade nos outros dias do ano.
A vida voltou a dar voltas e quando me vi novamente em outra casa, estava sozinha e preocupada com o tapete da entrada que, sendo um IKEA (noblesse oblige. neste caso a nobreza é mais burguesia) não pode ser lavado. Por isso todos os dias dou comigo a fazer ginástica para entrar em casa sem pisar o tapete da entrada. Ou a enxotar gaivotas com um: "se eu não posso dormir mais, vocês também não". Ou a trocar as linhas do livro mesmo antes de adormecer. Um dia cheguei a casa e uma gaivota tinha entrado pela varanda. Senti-me a Tippi Hedren. Percebi o filme. Gosto da vista, a cama é grande e minha, não tenho vizinhos, nem televisão, nem sofá (so far). Um achado que, espero, não tenha de perder.
A vida voltou a dar voltas e quando me vi novamente em outra casa, estava sozinha e preocupada com o tapete da entrada que, sendo um IKEA (noblesse oblige. neste caso a nobreza é mais burguesia) não pode ser lavado. Por isso todos os dias dou comigo a fazer ginástica para entrar em casa sem pisar o tapete da entrada. Ou a enxotar gaivotas com um: "se eu não posso dormir mais, vocês também não". Ou a trocar as linhas do livro mesmo antes de adormecer. Um dia cheguei a casa e uma gaivota tinha entrado pela varanda. Senti-me a Tippi Hedren. Percebi o filme. Gosto da vista, a cama é grande e minha, não tenho vizinhos, nem televisão, nem sofá (so far). Um achado que, espero, não tenha de perder.
12 Comments:
O capítulo habitação promete...
Que filme, Beluga. Fosse falado em italiano, seria um autêntico Nanni Moretti.
Caro anónimo de 01.05.2019:
Para já não deverá haver mais desenvolvimentos nesse capítulo.
Caro anónimo de 02.05.2019:
Foi à festa do Cinema Italiano? Eu tentei, mas não consegui.
Ohhhhh :(((((((
Caríssima Daphne.
Agradeço-lhe muito a referência que fez neste post aos Pássaros de Hitchcock. Era um filme que eu ainda não tinha conseguido compreender e voltei a pensar nele. Fiz o que já deveria ter feito há muito tempo: li o conto homónimo de Daphne du Maurier que Foi adaptado por Hitccock
. E parece que finalmente compreendi. Parece que Hitchcock também compreendeu bem o conto; o trailer que fez para o filme tem uma indicação claríssima, claríssima de que é assim. Mas duas opções que fez no filme, tiram, a meu ver, parte da grandeza do conto que é absolutamente magnífico; A 1ª foi ter centrado todo o filme na pequena aldeia piscatória, o que diminui a universalidade e generalidade da lei simples e natural que causa o comportamento dos pássaros; mas isto pode ter sido ditado por limitações da linguagem cinematográfica, a 2ª é não ter dado destaque ( que eu me lembre não deu, mas já faz algum tempo que vi o filme pela última vez) ao mecanismo das marés como catalisador ,explicador e melhor pista para entender aquele comportamento. É certo que aproveitou, a isca de Du Maurier ( Nat personagem principal do conto e net, rede, em du Maurier, e seagull e sea girl em Hitchcock, e contudo as seagull não são de desprezar como porta para compreender o conto). Estas limitações do filme parecem-me tão importantes que não sei se será possível compreender a história apenas a partir dele.
A Beluga também compreendeu o conto e compreendeu-o muitíssimo bem: é magnifica, muito melhor do que a garota de Ipanema e acho que o próximo samba enredo da escola da Mangueira deveria ser dedicado a si, Ó Daphne do morro.( e do planalto também, esperançosamente)
Como vê a sua pista foi muito boa, ou melhor dizendo, a sua alpiste frutificou.
Inté. Agora vou ler a Senhora Du Maurier. Ou muito me engano ou acabo de encontrar uma escritora que vale a pena ler. As coisas boas são como os bons interlocutores de Sócrates, o grego. Aparecem por acaso.
Fique bem, Ó divina
a banda
https://www.youtube.com/watch?v=OBDfWikT34M
Editado
A Beluga também compreendeu o conto e compreendeu-o muitíssimo bem. Tudo o que diz sobre o filme no seu magnífico post, não deixa qualquer dúvida obre isto: é magnifica, muito melhor do que a garota de Ipanema e acho que o próximo samba enredo da escola da Mangueira deveria ser dedicado a si, Ó Daphne do morro.( e do planalto também, esperançosamente)
Editado
Fique bem, Ó Divina
Nunca li o livro, só vi o filme. Mas parece-me um bom acrescento à lista interminável de livros que "um-dia-hei-de-ler-,-quando-tiver-tempo". Como viu no post "original soundtrack", "I never said I was deep, but I am profoundly shallow/My lack of knowledge is vast" (mas os meus horizontes não são narrow). Como se diz na minha família: tenho queda, não tenho é espaço para cair.
https://www.youtube.com/watch?v=Gr96A9XG1rs
Olá, boa tarde
Comecei a ler a du Maurier. Trouxeram-me a edição da D.Quixote de " Os pássaros e outros contos macabros" Esperanças completamente preenchidas. Li o conto, " Não olhes agora" e gostei muito. Que pena não estar na sua lista de leitura. Este simples conto, além de ser uma belíssima história e muito bem contada, tem um pequeno enigma para o qual ainda não encontrei a solução. Se o lesse podíamos falar sobre isso. Aqui onde estou não tenho ninguém com quem falar sobre estas coisas, poor me...
Fique bem e desculpe o entusiasmo do comentário anterior. Não é que não seja tudo verdade :))))
Homem, não me tente! Que eu sou menina para ir procurar o livro na biblioteca (está "indisponível" na Bertrand e na FNAC)!
Pois, queira fazer o favor de o ir buscar. Garanto-lhe uma primeira história de fazer correr a lágrima. E depois falamos se quiser. Há um pequeno enigma, vamos ver se descobre. Ainda não li as outras.
A propósito , o video do seu último post também está indisponível para os leitores. "Unavaible"
Fique bem
Unavailable
Sorry
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