- o carteiro -
Van Gogh
Fifteen Sunflowers in a Vase
1888
National Gallery, Londres
num deste dias, numa excepcional tarde de um Sábado de Setembro, quando as folhas já rodopiam no chão, mas o Sol está quente, tive de ir à igreja. todos nós, cristãos ou não, de livre vontade ou contrariados, convidados de primeira ordem ou penduras, temos, mais cedo ou mais tarde, e por via de um dos sete sacramentos aos quais somos chamados sem sabermos bem porquê, de ir à igreja. pois lá estava eu, no adro, à espera da hora - o Senhor tem o seu tempo - quando vejo sair, ainda inebriada pela festa e cega pelo Sol a Melinha, nubente, risonha e inconsequente.
A Melinha era uma miúda estouvada e pinchona que, entre os seus 14 e 16 anos frequentou lá a casa em virtude da maldita matemática. Era obesa e ruiva, gulosa, respondona e com tendência para sair da casca, tendência essa que crescia à medida que aumentava a distância da mãe. A mãe, ascética e draconiana, de evocação religiosa pronta na boca era uma daquelas mulheres rijas de corpo e cujas pernas eu imaginava sólidas, fibrosas, brancas e peludas, confesso. Vendia charcutaria no mercado, mas não raras as vezes o marido - um pau mandado de bigodinho aparado, mais baixo que a mulher, dado ao comentário e de pé ligeiro -, passeava entre o supermercado e a banca dos queijos sacos de plástico de onde acabavam por sair queijos adquiridos na grande superfície e vendidos, pelo dobro naquela banca de mercado. Tudo era caseiro, trabalhado por aquelas mãos que comem, oram e trabalham. Nada mais se pode fazer com as mãos, que esteja dentro dos limites da legalidade divina, que não comer, orar e trabalhar.
A Melinha crescida, no seu vestido de noiva era portentosa, bestial, e branca. O buço perlado, o peitilho rendado e alvo subia e descia, dando a conhecer um orgulho pelo seu Erlander (um folheto perdido no banco da igreja anunciava todo o programa da festa religiosa daquele enlace em que tanto os pais de um como de outro colocavam esperança: para netos, casa comprada a crédito, duas semanas de falatório na cidade e as boas graças de Deus aquando do Juízo Final. Havia mesmo a promessa da festa ser abrilhantada pelo próprio Senhor, em carne e osso, embora mais osso que carne). Os braços bamboleantes sacudiam o arroz, agitavam o véu, bramiam o bouquet, abraçavam todos. A mãe, vestida de preto como uma carpideira, olhava orgulhosa para aquele feito e rezava hossanas para que o sexo fosse somente com propósitos de procriação. Eu imaginava isto e imaginava a Melinha pinchona na intimidade. Sim, eu pecava em pensamento à porta da igreja. Imaginava até o pai, de bigode nivelado milimetricamente, ainda com a saca dos queijos na mão.
E já entrada na Igreja, fiquei a pensar na felicidade alheia, que é muito bonita e digna de registo. Dei também graças ao divino pelos Sábados à tarde, invenção supimpa de que gostava muito de usufruir mais amiúde, se faz favor. Obrigada.
6 Comments:
Boa tarde.
Pode explicar que sentido tem a palavra pinchona? Será saltadora?
Muito obrigado
John Flores
E já agora e porque tenho notado que gosta de mistérios, veja se consegue descobrir a verdadeira identidade deste grande pintor de flores e grande mestre da cor.
http://www.tate.org.uk/art/artworks/rousseau-bouquet-of-flowers-n04727
Obrigado e desculpe uma ou outra impertinência
John Flores
Caro Sr. Flores
Desculpe não comentar hoje, mas estou doente. Comento amanhã, se não se importar.
Até amanhã, beluga
Boa tarde.
Desejo-lhe melhoras rápidas.Oxalá isto ajude:
https://www.youtube.com/watch?v=hLxwycS-m7c
John Flores
Boa noite Sr. Flores
Estou melhor sim, obrigada.
Havia uma anedota que dizia o seguinte: um homem cai de uma bicicleta e magoa-se. Chega junto a um tasco para que lhe sirvam um bocado de aguardente para colocar na ferida. Ao olhar para o copo pensa: "tanto cura por fora, como cura por dentro". E vai daí, bebeu a aguardente. Eu penso o mesmo em relação ao seu link: tanto cura durante, como depois. E vai daí, guardei o link!
Quanto ao Henri Rousseau, vai ter de me dar uma pista. É um mistério da vida privada? Um mistério da vida pessoal? Vi a exposição dele no Musée D'Orsay o ano passado (que chique que ela é), mas confesso que é não é o meu tipo de pintura.
Bem, vou ali rezar uma novenazinha para expiar os meus pecados.
Até breve, beluga
Cara Beluga:
Estimo as suas melhoras.
Primeiro a Melinha, boa em matemática porque aprendeu contas a vender queijos na banca do mercado com os pais. Tive alguma dificuldade em perceber porque é que a Melinha tinha escolhido um sábado de Setembro para se casar. As moças simples como ela casam-se em Maio, Junho, Julho ou Agosto para cumprirem regularmente o calendário biológico simbolizado no bouquet, em que às flores seguem-se os frutos. Mas claro!! Um sábado de Setembro com um sol excepcional, digno de registo, tal como a felicidade alheia, assim haja escritora que os registe!! E nesta sua pequena história,aparentemente banal, até o Erlander, com o seu nome dissonante, ganha direito a ser subtilmente inscrito nos factos excepcionais do dia. Muito bom!!! Parece-me que temos escritora.
Depois o Sr. Rosseau. Se me fosse pedido que definisse o cânon da arte do ocidente, eu diria que é a proporção e a medida, passe a definição pleonástica. Rosseau e outros pintores conseguem concretizar esse cânon, dando proporção e medida à cor. Tenho-o por isso como grande pintor. De naif o sr. Rosseau teria talvez o nome, Henri Rosseau, tão francês, tão queijo camembert. Tenho que pensar na pista que vou dar-lhe. Não registei o raciocínio que fiz para chegar a conclusão. Depois digo qualquer coisa.
E aqui ficam umas flores da nossa poesia para a sua convalescença
https://www.youtube.com/watch?v=55tM6Vag2sA&list=PLHi_zyIHJhHRJC4gLDkLLbhUuvqd428FB&index=5
Pronto. Vai assim mesmo, com erros e tudo, que até o FLIP conspira contra mim. Espero que não me ache muito inconsequente.
Bom fim de semana
John Flores.
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