- o carteiro -
primeira parte de um daqueles trabalhos que eu gosto de fazer. honestamente, acho que quem tiver paciência também vai gostar muito de ler. é sobre as relações entre a Recherche (para os amigos) e a pintura:
No início era o espargo; o molho de espargos. Ainda que Marcel Proust (1871-1922) mereça todos os encómios numa introdução condizente, o trabalho que aqui se inicia não pretende escalpelizar a grande obra (em todos os sentidos) de Proust, “Em Busca do Tempo Perdido”, mas apenas apontar e aprofundar as relações entre esta e as outras, as de arte, de que Proust se socorre. O autor faz referência a obras de arte de Vermeer ou Botticelli para descrever personagens, paisagens ou situações. No entanto, e como seria de esperar de uma obra desta dimensão, o que preside à enunciação destas obras é mais profundo e prende-se não só com a estrutura do livro – em constante relação com a realidade do autor – como também com uma teia de influências que procuraremos aqui mostrar. Partiremos de uma situação do livro, para falar dos intervenientes, obras que os ilustram e fusão subentendida entre realidade e ficção.
Por isso sim, no início era o espargo, o espargo que surge no terceiro volume da Recherche como tema de parte de uma intervenção da duquesa de Guermantes num convívio em sua casa. Para ser vista pelos convidados como uma pessoa de espírito, a duquesa tinha por hábito depreciar os seus bens para que os outros os apreciassem. Na dissertação desta personagem acerca das obras de arte que possuía surge este excerto:
«Swann tinha o atrevimento de querer que comprássemos “Um Molho de Espargos”. Até estiveram cá em casa alguns dias. Mas o quadro só tinha isso, um molho de espargos precisamente iguais aos que o senhor está neste momento a engolir. Mas eu recusei-me a engolir os espargos do senhor Elstir. Pedia por ele trezentos francos. Trezentos francos por um molho de espargos! Um luís, é o que vale, mesmo temporãos!»[1]
O excerto merece várias análises: análise da observação da duquesa, das personagens referidas (Swann apresentado no primeiro volume e Elstir, um pintor), do quadro em si e das relações que tanto o quadro como as personagens estabelecem com o século XIX parisiense. Comecemos pela duquesa e o seu comentário beócio de quem confunde “a rima com o poema”. É que a duquesa atribui aos espargos pintados, o mesmo valor dos espargos que serve durante a refeição, como se algo do quotidiano não pudesse ser igualmente passível de constituir uma obra de arte.
Quanto à personagem de Elstir, é sabido que o modelo de Proust para a construir é tanto Whistler como Manet (1832-1883), Renoir (1841-1919), Chardin (1699-1779), Vuillard (1868-1940) ou Degas (1834-1917); ou seja, para elaborar a personagem de um pintor Proust usa o conhecimento que tem de outros, sendo que em alguns casos o conhecimento é pessoal. Tanto Vuillard como Degas viviam como ermitas, tal como Elstir. Tanto um como outro podiam ser o modelo de Elstir, embora com menor probabilidade para Degas que abominava a homossexualidade.[2] A Whistler (1834-1903), Proust foi buscar o nome: “Elstir” vem de uma espécie de anagrama com a palavra “Whistler”, à qual se retiraram as letras W e H tendo trocado a ordem das restantes. O caso de Manet e Renoir é mais profundo. É que na realidade, Manet pintou dois quadros intitulados Une Botte d’Asperges (Fig. 1).
Fig. 1
Edouard Manet
Une Botte d’asperges
1880
Wallraf-Richartz-Museum, Colónia
Proust toma aqui Elstir por Manet e atribui a uma personagem ficcional a acção de uma pessoa real. Aliás, nesta mesma passagem, um pouco atrás o narrador refere a relação entre Elstir e Manet, como se o primeiro conhecesse a obra do segundo e assim os dois coexistissem:
«(…) o retrato solene que datava mais ou menos daquele mesmo período em que a personalidade de Elstir ainda não estava completamente definida e se inspirava um pouco em Manet.»[3]
Mas a duquesa vai mais longe ao baralhar realidade com ficção quando diz, ainda um pouco antes: «(…) olhe, acho que Zola escreveu justamente um estudo sobre Elstir (…).»[4] Obviamente Zola (1840-1902), personagem real, não pode ter escrito um estudo sobre Elstir, personagem criada por Proust, sendo para mais os dois coetâneos. O que se passa é que quando a duquesa faz esta referência a Zola ela convida-nos a dar uma volta pela obra de Zola que escreveu em 1867, isso sim, um estudo intitulado “Edouard Manet”.
Mas voltemos aos espargos: um dos quadros Une Botte d’Asperges que Manet pintou foi muito apreciado por um crítico de arte e coleccionador do tempo de seu nome Charles Ephrussi (1849-1905). Ephrussi gostou tanto do Une Botte d’Asperges que pagou por ele mais do que aquilo que o pintor pedia. Manet pedia 800 francos e Ephrussi deu 1000. Manet vendeu o quadro, mas acabou por pintar outro, apenas com um espargo (Fig. 2), quadro esse que ofereceu a Charles Ephrussi e que fez acompanhar de um bilhete que dizia o seguinte: “falta um espargo ao molho que levou”.[5] Falamos aqui de Charles Ephrussi porque ele foi uma das bases para a construção da personagem Swann que é quem, no livro, aconselha à duquesa de Guermantes a aquisição do Elstir. Mas como vimos, a personagem de Elstir também tinha sido construída tendo por base outro autor: Renoir. A relação que este estabelece com Elstir vem por intermédio de Swann/Ephrussi, razão pela qual vale a pena conhecer um pouco mais desta personagem.
Edouard Manet
L'asperge
1880
Musée d'Orsay, Paris
Os Ephrussi eram uma família austríaca e judia de banqueiros que brilhou na sociedade parisiense e vienense do século XIX. Charles Ephrussi, em especial, era um amante e coleccionador de arte, apoiante dos Impressionistas[6] em ascensão, entre eles, Manet que pintou um dos mais famosos quadros do Impressionismo: Le Déjeuner sur l’Herbe (Fig. 3). Este quadro figurou no “Salon des Refusés” em 1863 causando grande escândalo pois colocou ante o observador não somente duas mulheres em convívio com dois homens entre árvores e rio, mas duas mulheres despidas, sem identidade sacra, junto a dois homens vestidos, todos a observarem o observador. É aqui importante referir que as jovens modelos não estão nuas; mas sim despidas. Estar nu parece ser, na história da arte, algo que aproxima o sujeito de um estado embrionário, puro. Estas mulheres estão despidas pois junto a elas vemos as suas roupas. E se estão despidas é porque, ou alguém as despiu ou elas se despiram. Se alguém as despiu elas serão umas mundanas que a isso se sujeitam; se se despiram serão ainda piores porque o fizeram, atendendo ao bom ambiente da cena, de livre vontade.
Fig. 3
Edouard Manet
Le Déjeuner sur l'Herbe
1863
Musée d'Orsay, Paris
Um dos autores que criticou este quadro foi Odilon Redon (1840-1916) cujo ponto de vista é contado na Recherche. A propósito dele o autor simbolista escreve:
«O pintor não está a ser inteligente se, após ter pintado uma mulher nua, ela nos deixa com a sensação que se vai vestir novamente… Há uma no Le Déjeuner sur l’Herbe de Manet que se apressa a fazê-lo, depois do desconforto de estar sentada na relva fria ao lado dos senhores de aparência severa que junto a ela se encontram.»[7]
Outro modelo de Proust para Swann foi Charles Haas (1832-1902), um dandy judeu que tentava naqueles tempos fazer passar a sua origem despercebida.[8] Ora, Charles Haas está presente no quadro de Tissot (1836-1902) (Fig. 4), Tissot este que talvez numa graça entre pares, pintou um quadro muito semelhante ao Le Dejeuner sur l’Herbe de Manet, ao qual chamou La Partie Carrée (Fig. 5), mas onde as figuras femininas estão vestidas.
Fig. 4
James Tissot
Le Cercle de la Rue Royale
1868
Musée d'Orsay, Paris
O quadro de Manet de 1863 remete-nos para o poema “De Tarde” de Cesário Verde (1855-1886):
«Naquele pique-nique de burguesas,
Houve uma coisa simplesmente bela,
E que, sem ter história nem grandezas,
Em todo o caso dava uma aguarela.
Foi quando tu, descendo do burrico,
Foste colher, sem imposturas tolas,
A um granzoal azul de grão-de-bico
Um ramalhete rubro de papoulas.
Pouco depois, em cima duns penhascos,
Nós acampámos, inda o Sol se via;
E houve talhadas de melão, damascos,
E pão-de-ló molhado em malvasia.
Mas, todo púrpuro a sair da renda
Dos teus dois seios como duas rolas,
Era o supremo encanto da merenda
O ramalhete rubro das papoulas!»
«Às vezes quando corto a relva, no jardim,
ouvindo os pássaros chilrear, interrompo-me
a pensar: e se, debaixo do pinheiro que cheira
a resina, se juntassem aqueles homens de fato e
lavallière, com barba e chapéus pretos, e
as mundanas nuas, rindo-se, como se vê no quadro
de manet? Eu não me sentaria na relva, como
eles: puxava uma cadeira, daquelas de baloiço,
que tenho na casa de arrumação; abria
o saco das compras, onde estão cadernos, livros,
a máquina fotográfica; e contava-lhes,
em francês, aquela história do gato chinês:
“Um dia, o sábio U Li-Po foi, de burro,
à feira. No caminho, parou debaixo de uma
ameixoeira: o sol era forte, e um sábio, mesmo
quando é chinês, e tem chapéu de mandarim,
não aguenta tantas horas à torreira. Quando dormia,
ouviu perguntar: quem és, U Li-Po? A voz pareceu-lhe
a dele; e respondeu: Por que me pergunto a mim
próprio o meu próprio nome? Mas a voz insistiu:
Quem és? Então, U Li-Po acordou: e viu um gato,
com chapéu de mandarim, a desenhar o seu rosto
num caderno de arroz. Quem és tu, ó gato? Eu
sou U Li-Po, disse-lhe o gato. E U Li-Po ficou sem
saber se o gato era ele no sonho em que estava, ou
se ele era o gato à sombra da ameixoeira.”
Os homens talvez se rissem; e as mundanas, coradas,
juntar-se-iam debaixo dos arbustos, tapando-se
com folhas de vinha (que felizmente, estão mirradas
e já não tapam grande coisa). Eu, então, pergun-
tar-lhes-ia de que sonho é que vêm? O de manet,
ainda cheio de flores primaveris e de botões
brancos como os seios das mundanas? Ou o meu,
já cansado de cortar a relva – e farto do gato que,
do telhado, se ri para mim lambendo os bigodes de chinês?»
«Naquele pique-nique de burguesas,
Houve uma coisa simplesmente bela,
E que, sem ter história nem grandezas,
Em todo o caso dava uma aguarela.
Foi quando tu, descendo do burrico,
Foste colher, sem imposturas tolas,
A um granzoal azul de grão-de-bico
Um ramalhete rubro de papoulas.
Pouco depois, em cima duns penhascos,
Nós acampámos, inda o Sol se via;
E houve talhadas de melão, damascos,
E pão-de-ló molhado em malvasia.
Mas, todo púrpuro a sair da renda
Dos teus dois seios como duas rolas,
Era o supremo encanto da merenda
O ramalhete rubro das papoulas!»
Ainda que não se saiba se Cesário Verde conhecia ou tinha tido contacto com o quadro de Manet, a verdade é que encontramos alguns aspetos em comum como “pique-nique de burguesas” (as personagens do quadro estão a fazer um pique-nique), “Foste colher” (a figura feminina em fundo parece estar a colher ou apanhar algo), “Nós acampámos” (no sentido de instalar no campo), “talhadas de melão, damascos/E pão-de-ló molhado em malvasia” (na pintura, no chão, há pão e frutos) “dois seios como duas rolas” (a figura feminina em primeiro plano está despida e tem aquilo a que se chamava, e correspondia ao ideal de beleza, seios como maçãs ou em forma de maçã – seios pequenos, redondos e firmes). Mas Cesário Verde não foi o único autor português que tomou o quadro de Manet como inspiração. Referimos que se trata de inspiração pois neste caso não se coloca o problema da precedência do quadro sobre o poema. O texto em causa é de Nuno Júdice (1949) e trata-se de “Almoço na Relva com Gato à Espreita”:
ouvindo os pássaros chilrear, interrompo-me
a pensar: e se, debaixo do pinheiro que cheira
a resina, se juntassem aqueles homens de fato e
lavallière, com barba e chapéus pretos, e
as mundanas nuas, rindo-se, como se vê no quadro
de manet? Eu não me sentaria na relva, como
eles: puxava uma cadeira, daquelas de baloiço,
que tenho na casa de arrumação; abria
o saco das compras, onde estão cadernos, livros,
a máquina fotográfica; e contava-lhes,
em francês, aquela história do gato chinês:
“Um dia, o sábio U Li-Po foi, de burro,
à feira. No caminho, parou debaixo de uma
ameixoeira: o sol era forte, e um sábio, mesmo
quando é chinês, e tem chapéu de mandarim,
não aguenta tantas horas à torreira. Quando dormia,
ouviu perguntar: quem és, U Li-Po? A voz pareceu-lhe
a dele; e respondeu: Por que me pergunto a mim
próprio o meu próprio nome? Mas a voz insistiu:
Quem és? Então, U Li-Po acordou: e viu um gato,
com chapéu de mandarim, a desenhar o seu rosto
num caderno de arroz. Quem és tu, ó gato? Eu
sou U Li-Po, disse-lhe o gato. E U Li-Po ficou sem
saber se o gato era ele no sonho em que estava, ou
se ele era o gato à sombra da ameixoeira.”
Os homens talvez se rissem; e as mundanas, coradas,
juntar-se-iam debaixo dos arbustos, tapando-se
com folhas de vinha (que felizmente, estão mirradas
e já não tapam grande coisa). Eu, então, pergun-
tar-lhes-ia de que sonho é que vêm? O de manet,
ainda cheio de flores primaveris e de botões
brancos como os seios das mundanas? Ou o meu,
já cansado de cortar a relva – e farto do gato que,
do telhado, se ri para mim lambendo os bigodes de chinês?»
Neste caso os elementos presentes tanto no poema como no quadro são mais evidentes, já que Nuno Júdice cita a pintura de Manet. Temos assim “homens de fato e lavallière, com barba e chapéus pretos, as mundanas nuas”, “ameixoeiras” e “arbustos”.
(continua...)
[1] PROUST, Marcel; TAMEN, Pedro (trad.) – Em Busca do Tempo Perdido: O Lado de Guermantes. Mem Martins: Relógio d’Água, 2003, p. 502
[2] ALEXANDER, Patrick – Who’s Who in Proust. S. l.: Patrick Alexander, 2007, p. 28
[3] PROUST, Marcel; TAMEN, Pedro (trad.) – Em Busca do Tempo Perdido: O Lado de Guermantes, pp. 501-502
[4] IDEM, Ibidem, pp. 501
[5] “Merci pour la Botte; il manquait une”. BROMBERT, Beth Archer – Edouard Manet: Rebel in a Frock Coat. Chicago: Chicago University Press, 1997, p. 439
[6] O prestígio dos Impressionistas inscrevia-se de forma anagramática na palavra Simonet (Monet, Sisley & Cia, passamos para Si+Monet=Simonet). Simonet é o nome de família de Albertine, o amor do narrador que representa, a par de Elstir a pintura já que Proust a cristaliza na imagem que tem do bando de jovens na praia, a que Albertine pertence. VVAA – Proust et ses peintres. Amesterdão: Editions Rodopi, 2000, p. 59
[7] Tradução da autora do original: “The painter is not being inteligente if, after he has painted a nude woman, she leaves us with the feeling that she is about to get dressed again… There i sone in Manet’s Le Déjeuner sur l’Herbe who will hasten to do so, after the discomfort of sitting on the cold grass beside the down-to-earth gentlemen she is with.” VVAA - Manet, 1832-1883: Galeries Nationales Du Grand Palais, Paris, April 22-August 8, 1983, the Metropolitan Museum of Art, New York, September 10-November 27, 1983. New Iorque: Metropolitan Museum of Art, 1983, p. 170 ISBN 0-87099-359-3
[8] Vemo-lo no extremo direito do quadro de Tissot de 1868, Le Cercle de la Rue Royale, que retrata o grupo de membros deste clube de acesso restrito. No romance de Proust, Swann era um dos poucos judeus que frequentava o exclusivo do Jockey Club.
6 Comments:
Muito Bom,
Swan, a minha personagem preferida depois do narrador.
Quanto mais se lê; Em busca do tempo perdido, mais se gosta.È dos poucos que não paro de reler.
continue por favor
vou publicar mais duas partes deste trabalho. tenho pegado e abandonado a leitura de Proust várias vezes, porque agora que investiguei e tive conhecimento da (ainda maior) profundidade do romance, sinto sempre que este merece mais atenção e tempo do que aquele que disponho actualmente. quando acabar o curso, volto a ler com calma.
qualquer dia temos de ir tomar café.
a sério?
A sério.
Mas preciso de um email.
Afinal, eu mesmo, sozinho, fui capaz de descobrir o email.
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