- o carteiro -
[da falta de gosto]
existirá, em arte, o "nunca devia ter existido" como na História? Fenómenos como o ultra nacionalismo produziram efeitos aberrantes na sociedade e conduziram milhares à morte. Nunca deveria ter existido e mesmo que se advogue que fenómenos destes previnem gerações futuras, o conhecimento do mal não evita esse mesmo mal. E deverá evitar? Pergunto o mesmo para a arte: a existência de movimentos que foram claramente, do ponto de vista estético, um erro alerta-nos para a necessidade de não se repetirem? Ainda que se salvem as respectivas diferenças (na arte não há mortos nem feridos, só os de alma), pergunto-me se as circunstâncias que permitiram o aparecimento de um movimento em determinada época ainda podem ser a legitimação do mesmo sendo que esse movimento ainda perdura - nada o apagará da história da arte - e deixou os seus discípulos. Com isto refiro-me a movimentos artísticos breves que se tornaram a excepção no seu tempo e que são, desculpem-me todos os leitores, de claro mau gosto. Porque é que eu digo isto? Porque posso...
Estes movimentos, como disse foram breves no tempo e não duraram mais do que uma década. Foram também muito locais, sendo que o seu aparecimento se limita a um ou dois países ao mesmo tempo. E surgiram quase sempre como reacção à corrente dominante embora por si não tenham formado uma outra corrente significativa e dominante, como o Realismo o foi em relação ao Romantismo, por exemplo. São também movimentos que defendem determinadas características que os movimentos artísticos vigentes não abarcavam, mas que parecem não motivar a maior parte do público. Claro que os mesmos têm lugar num período da tabela cronológica da História da Arte em que a mesma se separa mais da História em si e foca-se mais na Arte; ou seja, à medida que os estilos artísticos deixam de ser oficiais e globais (ocidentais ou orientais).
O primeiro exemplo surge, na minha opinião, com a entrada no século XIX num momento em que a industrialização e o gosto pela ordem do Neoclássico estrangulava as demandas espirituais. Como resposta os artistas aludiam ao valores medievais que se tinham perdido e que faziam a apologia do cavalheirismo, da pureza, da imaginação, da fé e como não podia deixar de ser, por oposição à máquina, faziam a apologia do artífice. Esses eram os Pré-Rafaelitas. Notemos que parte do grupo procurou uma tendência pictórica chamada Medievalismo embora nenhum deles tenha sido considerado medievalista. Quero com isto dizer que o Medievalismo pode ser visto como uma tendência dentro da tendência dominante. Alguns pintores Pré-Rafaelitas optaram por um estilo medieval nos seus quadros, estilo esse que foi apoiado pela estética que Napoleão defendia e que se refugiava nesses valores de pureza, virgindade, honestidade artística, etc. Não será por isso de estranhar que os temas retratados tenham sido retirados de artes transversais como a literatura de Shakespeare ou a poesia trovadoresca. O pré-Rafaelismo inglês apelava a um anti-academismo bem como a um regresso ao período da pintura pura que, na opinião do grupo e do seu maior teórico John Ruskin, era anterior à pintura de Rafael. Segundo os Pré-Rafaelitas, este pintor tinha inserido na arte um realismo nada saudável que dava às suas pinturas um carácter demasiado carnal. Católicos e Protestantes uniram-se me torno desta ideia e adoptaram como modelos profissionais - e não como modelos formais, note-se - pintores como Boticelli e Mantegna. Houve um reagrupamento dos Pré-Rafaelitas que se uniram em torno de Rossetti e que numa segunda geração procuraram uma maior comunhão com a natureza como forma de chegar a Deus. Dentro deste grupo destacam-se William Morris, Rossetti e Edward Burne-Jones. Os temas mantêm-se: mitologia pagã, cenas da vida de Cristo... mas o enquadramento é sempre mais naturalista e acaba por ter mais importância o tratamento que o tema em si. Na Alemanha os Pré-Rafaelitas agruparam-se sob a denominação de Nazarenos que como o nome indica eram defensores do retorno a um estilo de vida semelhante à de Cristo. Tal como os Pré-Rafaelitas, vinham do Romantismo, mas pretendiam levar à sociedade os valores de pureza e espiritualidade da arte cristã primitiva. Assim como em Inglaterra existiu a Irmandade Pré-Rafaelita, na Alemanha os Nazarenos fundaram (através de Pforr e Overbeck) a Irmandade de São Lucas (São Lucas era o protector dos pintores). Este grupo levou tão longe as suas crenças que se retirou num mosteiro e adoptou os cabelos longos e as vestes castanhas e pobres tal como Jesus e os seus apóstolos teriam adoptado. Alguns dos quadros não provocam em nós o sentimento imediato de rejeição pois parecem aceitáveis, mas quando atentamos à sua data, sentimos de facto um amargo na boca: estavam muito longe de corresponder à estética da época. E embora se possa pensar que a data não tem importância numa obra de arte teremos que admitir que se o contrário (uma obra de arte que parece muito avant la lettre para a data em que foi realizada) nos faz louvar o artista, isto pode fazer-nos subvalorizá-lo.
John Millais
The Blind Girl
1854-56
Birmingham City Museums and Art Gallery
Edward Burne-Jones
King Cophetua and the Beggar Maid
1884
Tate Gallery, London
Overbeck
Italia and Germania
1815-28
Neue Pinakothek, Munique
Surge em seguida no tempo o Simbolismo. Quer dizer, o Simbolismo foi quase contemporâneo do Pré-Rafaelismo, mas enquanto os Pré-Rafaelitas pretendiam uma cisão com o presente, o Simbolismo teve origem numa derivação natural de movimentos como o Impressionismo e o Pós-Impressionismo e originou mais tarde grandes movimentos de vanguarda como o Surrealismo e o Dadaismo, ao contrário do Pré-Rafaelismo que foi em si um movimento estéril. Tal como o Pré-Rafaelismo, o Simbolismo teve precursores entre eles Dürer e William Blake, bem como Jean Moréas que escreveu o Manifesto Simbolista. Conforme foi dito, o Simbolismo derivou em certa medida da técnica já utilizada pelos Pós-Impressionistas, isto porque revelou as suas figuras humanas em cor plana e contornos negros que a espartilhavam e não permitiam a mistura do olho humano. Gauguin (um Pós-Impressionista) foi um dos seus teóricos, ao defender o regresso ao universo artístico de temas como o desconhecido, a natureza, a mulher, o enigmático, a espiritualidade, a sexualidade, o misterioso, etc. No fundo estes propósitos estão na senda daquilo que Freud enunciou nesta época. Apesar de se notar a presença nesta temática da Natureza, a Natureza pintada pelos Simbolistas é sempre uma natureza ameaçadora ou ameaçada, tenebrosa. Já a mulher pintada pelos simbolistas não é a mulher pura e virgem dos Pré-Rafaelitas, mas sim a mulher sedutora ou por oposição a isto, a mulher andrógina e com uma sexualidade ambivalente numa altura em que muitas mulheres assumiram a sua homossexualidade e muitos dandis viviam-na para escândalo social. Enquanto este grupo de Simbolistas se apoiava e reunia um conjunto de pintores, escritores, compositores (como Wagner com o paradigma do onírico na Tanhäuser) e poetas, os Nabis, grupo que se desenvolveu em Pont-Aven estava confinado a um número restrito de pintores e escultores. Foi aliás em Pont-Aven que Gauguin viveu. O termo Nabis vem do hebreu que significa "profetas", mas verdade seja dita que não foi um movimento muito diferente do Simbolismo. Digamos antes que foi uma derivação mais intimista do Simbolismo, uma vez que nos quadros e nas esculturas os Nabis pretendiam retratar esse retorno à natureza e ao sonho, mas no sentido pessoal. Estavam então centrados nos seus sonhos, no seu universo íntimo, nos seus desejos e medos. Em Pont-Aven começaram a trabalhar em áreas diferentes como o vitral e o esmalte, sendo que no caso do vitral o próprio material pedia essa separação de cores que se tornou mais e mais acentuada. Diz-se até que os Nabis de Pont-Aven trabalharam em direcção ao Sintetismo (simplificação das formas com o objectivo de exprimir ideias) e ao Cloisonismo (separação das cores que já se aplicava muito no esmalte).
Gustave Moreau
Zeus and Semele
1896
Musée Gustave Moreau, Paris
Pierre Puvis de Chavannes
Beheading of St. John the Baptist
1869
Barber Institute of Fine Arts, Birmingham
Embora não se enquadre aqui pois não foi um movimento de curta duração nem infrutífero, o Expressionimo perturba-me por ser... demasiado expressivo. O Expressionismo e Neo-Expressinismo com a tentativa de mostrar a defesa pelo radicalismo emotivo que já vinha sendo uma realidade desde Van Gogh e Munch, cai em meu entender - e isto apenas por uma questão de gosto - em exagero. O Expressionismo é contudo um movimento complexo e mais amplo, mais abrangente que os anteriores aqui enunciados, uma vez que o movimento teve pelo menos duas correntes (os Die Brücke e os Der Blaue Reiter) e várias adaptações principalmente na Alemanha, onde nasceu. Teve além disso uma forte influência da história e dos acontecimentos sociais e políticos (Primeira Grande Guerra Mundial). Os Die Brücke ("A ponte") formaram-se em Dresden e tentavam fazer a ligação entre os seus antecessores e o futuro. A sua forma de pintar tinha muito do Fauvismo principalmente no uso da cor, das formas simplificadas e da natureza. Os Der Blaue Reiter ("O cavaleiro azul") - nome retirado de um quadro de Kandinsky - formou-se em Munique e estava mais ligado ao misticismo. Retiremos por momentos Kandinsky do rol de Expressionistas. Ficam Kirchner, Otto Müller, Karl Schmidt-Rottluff e Kokoschka. Todos eles apresentam cores cruas, pinceladas rígidas e fortes, temas cruéis como a guerra e a escravidão. Apesar desta crueza mostrar a realidade da época e servir de crítica social, ela também pode ser vista como a versão figurativa daquilo que seria o Expressionismo Abstracto, o Cubismo e o Futurismo se estes tivessem sido movimentos figurativos.
Kirchner, Ernst Ludwig
Self-portrait as soldier
1915
Allen Memorial Art Museum, Oberlin College, Ohio
Karl Schmidt-Rottluff
Girl Before a Mirror
1915
De forma quase simultânea surgem dois movimentos em partes distintas da Europa, um com maior alcance que o outro, que desagradam profundamente quem os vê. Um deles é a Arte Metafísica que depois dá origem ao Surrealismo. O outro é a Nova Objectividade ou Die Neue Sachlichkeit. Esta última corrente surgiu nos anos 20 na Alemanha e teve desenvolvimento após a Segunda Guerra Mundial como crítica ao sentimento político da época. A Alemanha vivia entre a derrota na Primeira Guerra Mundial e o advento do regime Nazi que nesta altura era apenas traduzido por uma maior concentração do poder no Estado e um nacionalismo exacerbado (numa altura em que ainda se curavam algumas feridas de guerra). A Nova Objectividade é por isso trocista em relação à situação política que mina a actividade intelectual do seu tempo, mas faz da sua troça uma arma, na forma afiada e angulosa dos cafés de Berlim e nos rostos dos escritores. A Nova Objectividade não apela em nada à identificação do sujeito com o retratado por ser agressiva e repulsiva. O outro movimento que referi aqui é o Realismo Mágico cujos principais representantes foram Paul Delvaux e De Chirico.
Otto DixDedicated to Sadists
1922
Colecção Particular
Giorgio de Chirico
The Uncertainty of the Poet
1913
Tate Gallery, Londres
Paul Delvaux
Sleeping Venus
1944
Tate Gallery, Londres
5 Comments:
peço desculpa por não ter tempo de ler este post como por certo merecia
Beluga o AM
está um mandrião !
li o post
em parte concordo e em parte discordo
mas só dou a minha opinião depois de um almoço ou jantar ...
Caro AM:
Está desculpado. Eu peço desculpa por muitas vezes não ler os seus posts nem ir ao seu blog, nem comentar. Mas como vê o que escrevo é muito fraquinho face ao que o AM escreve. Gostaria de ter a sua capacidade, já o disse uma vez e repito. Mas de qualquer forma o blog está aqui, pode ler os posts quando quiser, se quiser.
Cara Alma:
Por mim venha ele. Pode até ser cá em cima que, segundo dizem, se come melhor. Mas desloco-me aí para discutirmos Expressionismo (tenho a sensação que é com esta parte que não concorda) quando quiser.
a beluga escreve (e bem)
o AM/ODP atira palavras (e imagens) às janelas das postas e raramente acerta
no alvo
almoço, jantar, lanche, ceia
alinho em tudo
Caro AM:
desculpe o comentário atrasado, mas eu e a Maria já tratamos de tudo, como deve saber. acho que vai ser bom.
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