quarta-feira, fevereiro 28, 2007

- não vai mais vinho para essa mesa -

Para "vareiar" um pouco

Vincent Van Gogh
Fifteen Sunflowers in a vase
1888
National Gallery, Londres

Quando a minha idade era outra que não esta e quando a minha história era outra que não esta que nunca podia ter acontecido segundo os cânones tão bem postos e inquestionáveis, a minha descendência era nobre.
O meu pai sofria de pé boto e inúmeras doenças nos ossos, o que fazia dele um homem enfezado e nada agradável para convívio ou mesmo futuro compromisso. Era conde: conde da parte da mãe e inexistente da parte do pai que nunca lhe quis mudar os cueiros. Nunca sorria, entretinha-se com a majólica pela noite dentro e privava com a nossa soberana sempre que esta solicitava a sua presença aos aposentos reais. Consta-se que o meu pai servia muito bem a soberana, o que me deixava satisfeito por pensar que a sua enfermidade que infelizmente revelava a hereditariedade de que era portadora e que tinha sido destinada muito generosa e inteiramente para a minha pessoa, deixava em aberto a possibilidade de um homem de alta estirpe embora baixo espírito, gozar dos favores de uma soberana tão cheirosa quanto a nossa. Refiro a importância do odor corporal da soberana pois esse era um assunto de suma importância quanto à escala de consideração que eu lhe dava.
A minha mãe – que por parte da mãe era uma costureira de pulmões tuberculosos e da parte do pai seria sempre uma rameira – era por parte de marido uma senhora condessa. Por vezes, quando sabia que o meu pai brandia a sua espada viril (encarquilhada, mas viril) no boudoir da rainha, balia: “Mefistófeles!!! Meu esposo é um conde sem coroa e em breve sem cabeça”. Dizia “Mefistófeles” para o meu pai e não como invocação. A nós, até o Messias de Haendel nos era proibido trautear quando a vela sagrada não estava acesa indicando a presença do Salvador. Como a minha mãe balia, acentuava as sílabas “má, mé mi, mó e mú”, por isso, em vez de a criadagem ouvir “Mefistófeles”, ouvia “méfistofeles”. Ninguém sabia o que queria dizer e a minha mãe que tinha aprendido o vocábulo havia pouco tempo e graças à chegada de um oficial falido que procurava consolo nos braços gordos da burguesia e da nobreza, também não sabia. Eram idiossincrasias próprias dos vários afazeres diários: arranjar o cabelo, comer, visitar pessoas, responder a convites, comer, dormir, balir e preparar a sagrada noite com o meu pai, que adiavam por causa do cheiro a enxofre.
Quando o meu pai pressentia a necessidade de bramir a espada de conde (muito encarquilhada perante o corpo pesado da minha mãe, sem força alguma para se tornar viril), ficava até mais tarde na majólica. A minha mãe no quarto explodia de excitação algo que repito, só acontecia muito raramente quando o oficial falido ia afogar mágoas no peito farto de outra senhora. Com a excitação, rebentavam-se-lhe as pústulas e o cheiro a enxofre era tal que a criadagem barrigava com a expressão: condes de chofre e de enxofre.
A minha avó que não consta de nenhum registo nem se sabe que tenha existido, o que está certo, dizia que o meu pai não era de grandes falas, mas que tinha um coração enorme, muito maior que ele. Era verdade. O coração que cavalgava juntamente com o resto do corpo, na pele cheirosa da rainha, rebentou um dia chegando mesmo a cuspir-lhe nos cabelos de oiro um fio de sangue. A minha mãe ficou a “pustular” para sempre e a postular para sempre, à espera que a segurança Social do reino lhe desse a pensão do meu pai que tão bem serviu a pátria, por ela e nela morreu.