segunda-feira, novembro 27, 2006

- não vai mais vinho para essa mesa -

Um pintor enjoativo abafado por uma teoria contraditória, perigosa e que não foi a cura para todos os males, ou Não gosto de Jaques Louis David que embora não seja um orientalista como Ingres (que bonita a eugenia!!!) não deixa de ser mauzinho, fracote.


Não se pode retirar à Revolução Francesa o bem mundial de separar do respectivo corpo e autonomia, algumas cabeças coroadas e menos bem pensantes da aristocracia francesa. Cresce em nós uma pena falsamente saudosista em imaginar a cabeça da Kristin Dunst decepada, mas a Revolução teve razões que a própria Revolução desconheceu. Salvou-se ilustríssima personagem de Luís XV que se pelo menos não brilhou tanto como o seu antecessor Rei-Sol (“Le Roi Danse”), gozou dos favores terrestres junto de uma Madame du Barry com carnes mais rijas e sem sombra da feiura da nossa Mariana Vitória, que rejeitada por este em plena infância, foi transferida por bula papal para os braços de D. José de Portugal.

A Revolução francesa, sobre a qual este post não pode versar a fundo, levantou-me há tempos várias questões, motivadas não somente pelo filme, mas por leituras daqui e dali e por um quadro de Jaques Louis David. Ora tão nobre senhor, não me suscita a mínima curiosidade pela vida e pouquíssima pela labuta, não versasse esta sobre o que versa e não tivesse sido este o homem que amestrou Ingres. Já se vê pela obra do primeiro a falta de rasgo na obra do segundo, sempre muito preso aos ismos e mesmo quando liberto de um ismo literal e raptado na sua curiosidade pela fotografia, não deixou de soltar um “a fotografia é melhor do que o desenho, mas não é preciso dizê-lo”. Ingres socorria-se dos daguerreótipos fresquinhos que depois deveria menosprezar em reuniões com amigos e frente à última pincelada de um quadro de entronização.

A Revolução Francesa tinha o belo propósito de tornar mais igual uma sociedade dividida por uma desigualdade irreversível. Acabou por ser uma reviravolta na organização social, no posicionamento do poder e na história ao cometer os primeiros casos de “mal absoluto”. A procura desta sociedade mais justa, que corrompia os outros levando-os a procurar no seu íntimo um regresso às origens arrancou dos peitos desejosos dos românticos o mais profundo dos “ais” e a justificação para os ismos que conhecemos: “o exotismo”, a busca do “orientalismo”, o “sentimentalismo”. Já mais tarde, quando a arte entrava no Realismo pela mão teórica de Proudhon este referiu que propriedade era crime, o que no fundo queria dizer que a legitimação da posse de qualquer bem apenas seria concretizada se esse bem fosse resultado do trabalho. Proudhon não inventou nada de novo, pois já em cerca de 1650 uma seita herética inglesa denominada “diggers”, recusava o direito a propriedade privada pois a “verdadeira liberdade reside no livre usufruto da terra”. Não encaro portanto estes dois movimentos quer na sua base política quer na sua expressão artística como totalmente antagónicos, uma vez que um levou a outro; só os ideais da Revolução Francesa permitiram ao Homem o seu exílio e mais tarde a consciência de si mesmo, do seu valor e do valor do seu trabalho, elevando a sua condição. Aqui reside a diferença: os românticos preferiam contemplar, os realistas tinham de se fazer à vida. Os românticos que contemplavam, não eram o povo com que se enchia a boca para falar de Revolução

Não esquecendo Ingres, as suas declarações polémicas e o seu professor, há que ter em conta a mui famosa “Morte de Marat”. Marat era um político proeminente, deputado, votante enfileirado a favor da execução do rei, redactor de um jornal - "O amigo do povo" (também em versão on-line) - e um dos cérebros da Revolução. Mas como sabemos, a fama de um homem geralmente deve-se mais ao que não fez, ou ao que fez sem pensar do que ao seu talento. Marat tinha sido, até à altura em que publicou em Inglaterra um texto intitulado The Chains of Slavery, em que propunha a punição de toda a aristocracia e burguesia devido aos seus ataques ao povo um renegado social, um inadaptado. Foi “agarrando-se ao povo” que Marat foi sucessivamente banido e aceite na Revolução, por defender ideais tão extremistas. Um demagogo, portanto, mesmo na hora da morte e sobretudo depois de morto.

Charlotte Corday
(pintor anónimo)


Jacques Louis David não lhe ficava atrás em termos de militância pois era director da Fête de la Revolution, uma espécie de festival onde se oferecia ao povo uma série de entretenimentos à semelhança do que antes a nobreza fazia nas festas com arquitecturas efémeras e recurso a meios “de ponta”, e do que a própria Igreja também fazia nas suas procissões e festas. Só por isso a Revolução Francesa mostra a sua fragilidade, uma vez que é dos elementos que abominando a aristocracia e o clero, socorre-se dos mesmos artifícios para os mesmos fins: angariar fãs. A obra que Jaques Louis concebeu não só deve ter batido o recorde de “obras de arte realizadas no mais curto espaço de tempo” (Marat morre em 1973 e o quadro é pintado nesse ano), como também permitiu o espanto dos seus correligionários por um retrato tão pungente: de político a mártir. O que ele nos mostra na forma tanto se aproxima de voyeurismo (e nós, de simples consumidores da desgraça alheia), como da propaganda. Voyeurismo porque não hesita em ir buscar os aspectos mais comezinhos da morte, todos os pormenores passados de boca e boca e que ficavam assim condensados numa pintura como se esta pudesse ser a ilustração das notícias faladas. Propaganda porque apela à lagrimazinha, ao sentimento fácil: Marat morto, despido da cintura para cima, a banheira como uma ara, um altar sacrificial, o seus rosto pálido, o papel na mão com escritos a favor do bem do povo, sem sinais de luta, apanhado desprevenido, “o coitado!”.

Jaques Louis David
Death of Marat
1793
Musées Royaux des Beaux-Arts, Bélgica



Anibal Carracci
Pietá
1599-1600
Museo Nazionale di Capodimonte, Nápoles


A forma de apresentar o corpo de Marat não é casual, uma vez que nas Descidas da Cruz e nas Pietás, Cristo é muitas vezes representado como rosto voltado para o observador e apoiado no ombro. Convém acrescentar que na véspera da morte de Marat, David visitou-o e foi exactamente na banheira que o viu pela última vez. Não pintou a realidade do que viu; ou seja, o local onde se encontrava a banheira tinha, a enquadrar esta, uma pintura que aqui não aparece para não distrair, bem como para nos mostrar o quão simples era a vida de Marat e que acaba por ter o mesmo efeito do dourado das pinturas de início do Renascimento. Também as marcas de pele que Marat tinha devido a uma doença, desapareceram, e o bilhete que exigia o bem-estar do povo nunca foi encontrado.

Depois de uma grande travessia no deserto, que certamente não será a última, voltamos aos posts grandes. Ao contrário do que Maria Rita diz (“Não sou freira nem sou puta”), não conseguimos encontrar o meio-termo: ou sou freira, ou sou puta. Excedi-me, serei o quê?

3 Comments:

Blogger AM said...

Excessiva! :)

"raptado na sua curiosidade pela fotografia"

fiquei curioso... o que pensas disto:

http://odesproposito.blogspot.com/2006/11/e-eu-no-sabia-de-nada.html

27/11/06 5:44 da tarde  
Blogger Belogue said...

Eu também não sabia de nada. Devemos andar a viver em outro planeta.
- Daqui Terra chamando bloggers, escuto.
-...

27/11/06 6:01 da tarde  
Blogger AM said...

ou será
daqui bloggers chamando terra? :)

27/11/06 8:18 da tarde  

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