terça-feira, agosto 22, 2006

- não vai mais vinho para essa mesa -
coisas de que uma pessoa se lembra:
Vincent Van Gogh
Fifteen Sunflowers in a vase
1888
National Gallery, Londres
Quando a minha idade era outra que não esta, eu tricotava os meus próprios cachecóis e levava-os, contra a vontade da minha mãe, para a escola. Saía de lá a meio da tarde, descia a rua 23 sozinha e atravessava a passagem de nível com a anuição da senhora do cubículo, a senhora que levantava a bandeira consoante a iminência ou não de comboios na linha. Numa corrida chegava depois a casa, fazia os deveres escolares, bebia café com leite – mais leite do que café – e comia um pão com queijo e marmelada ou com queijo e marmelada e manteiga. Descansava em seguida vendo a Rua Sésamo na TVE uma vez que ainda estávamos longe dos tempos em que o Poupas passava na televisão do estado. Ao fim da tarde vestia o fato de ginástica preto, ou o vermelho – recordo de um azul que a minha mãe me trouxe do Brasil, mas que não vesti muitas vezes porque não tinha um ar “suficientemente profissional” -, metia as sabrinas pretas no saco de ginástica e lá partia a pé para o pavilhão do clube da terra para mais uma aula de ginástica de competição tendo a Clara como professora. Pelo caminho parava por casa de algumas colegas com quem partilhava a espargata e o pó de talco para as mãos. Um dia, ao sair das barras assimétricas – que preferia às paralelas por falta de força nos braços -, a saída “à Napoleão” correu mal e bati com as costas no chão. Lembro-me de pensar que aquilo era a morte aos seis anos e pedi para chamarem os meus pais e a professora de ginástica, a Clara, que agachada junto de mim, se riu do meu fio de voz, imóvel, no chão e sem colchões. Lembro-me dos saraus de ginástica, geralmente aos sábados à tarde. A classe feminina, impulsionada pelo forte sentido estético da Clara apresentava sempre coreografias ousadas e fitas no cabelo a condizer com a cor do fato de ginástica. O solo, as assimétricas e a trave eram preferíveis ao salto no cavalo, às argolas e às barras paralelas. O flic-flac nunca consegui fazer. No final da exibição era-nos oferecido, dentro de um saco de plástico da mimosa com estampado a imitar verga, um pacote de leite com sabor a morango e uma embalagem de seis bolachas recheadas de baunilha que eram devoradas com método: primeiro abrir as duas partes da bolacha, depois lamber a baunilha nas duas bolachas e por fim comer a bolacha empurrada com o leite amorangado. Lembro-me de ter mudado de cidade e ter abandonado a ginástica. Lembro-me o que me custou.

Lembro-me dos meus discos do Topo Gigio e de não ter peluches que detestava, lembro-me de uma aranha debaixo da cama, de enfiar toda a roupa que tinha nas gavetas dentro de sacos de plástico, calçar os sapatos de tacão alto da minha mãe, colocar o terço de contas de madeira ao pescoço – so fashion – e vir para a porta de casa mostrar-me. Lembro-me de não haver raparigas na rua e de ter de brincar sozinha, de virar a bacia da roupa ao contrário para fazer de mesa e fazer de conta que tomava chá. Lembro-me de falar sozinha para um outro que era eu mesma, mas que era diferente de mim e por isso me ouvia. Lembro-me de pintar a parede do muro do quintal e de pintar as portas também, de desenhar na parte de trás de pequenos rolos de papel de parede. De ir à missa e na Páscoa, as despedias serem diferentes. Em vez do tradicional: “Ide em paz e que o senhor vos acompanhe”, o senhor padre dizia “Ide em paz e que o Senhor vos acompanhe. Graças a Deus, Aleluia, Aleluia”. E os fiéis respondiam: “Graças a Deus, Aleluia, Aleluia”. Mas como o faziam descompassados, era possível, no meio deles, elevar um bocado mais a voz de inverter as expressões. Assim, quando já toda a gente se benzia para a retirada, eu ficava de frente para o Sacrário a repetir num tom acima do normal: “Aleluia, Aleluia, Graças a Deus, Aleluia, Aleluia, Graças a Deus, Graças a Deus, Graças a Deus, Aleluia, Alelu…”. Até que a santa da minha mãe me dizia: “Já chega.”

Ao Sábado tinha os treinos de hóquei em patins, aos Domingos havia rojões de porco com arroz de padres-nossos em casa da minha avó. A viagem de carro era ao som dos Bonney M e dos Abba. Uma desgraça… Quando havia tempo metia a combinação da minha mãe na cabeça e fazia de conta que tinha cabelo comprido, quando havia dinheiro, fazia-se mousse de chocolate, quando me deu na ideia, fiz um bolinho de areia tendo como molde o meu umbigo, apanhei uma infecção no buraco e jurei para nunca mais. Passava muito tempo só com os meus botões. Tinha uns muito bonitos que eram umas joaninhas. Na minha escola havia duas irmãs ruivas que usavam vestidos de veludo azuis, uma visão “Alice no país das maravilhas” que nunca vou esquecer. Depois mudei de escola e aprendi muitas coisas, mas só mais tarde, porque a classe estava muito atrasada nas contas de dividir. Enquanto esperava, fazia desenhos. Aos oito viajava de comboio sozinha, nunca perdi o passe, nunca adormeci, nunca deixei que um estranho me oferecesse chupa-chupas. Dizia “rabuçado” e “esbarramento”.

3 Comments:

Anonymous Anónimo said...

Este comentário foi removido por um gestor do blogue.

22/8/06 1:33 da tarde  
Blogger Ji|||i said...

Nao pude deixar de me rir as gargalhadas com o bolo de areia feito em molde de umbigo!

22/8/06 3:00 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

Não é necessário pedir desculpa. eu compreendo bem.Bj

22/8/06 5:37 da tarde  

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