quinta-feira, fevereiro 02, 2006

O CARTEIRO



Joyce: Criei uma obra onde o Tempo é o tempo individual, o tempo de uma vida. É "Ulisses".
Woolf: Eu também. Criei "Orlando". O Tempo do meu narrador é o tempo de várias gerações, mas só visto por ele.
Joyce: Digo individual porque a obra dura um dia, um dia na vida da personagem principal, Ulisses.
Woolf: Tal como numa Odisseia mas concentrado?
Joyce: Sim. Acima de tudo, não é o Tempo que passa, mas a consciência dele.
Woolf: Percebo-o totalmente, Orlando também tem consciência do Tempo, mas mais do que isso, das mudanças que o tempo operou em si.
Joyce: Rugas?
Woolf: Antes fosse! O Tempo mudou-lhe o sexo e os gostos inerentes a essa mudança. Orlando começa homem e acaba mulher.
Joyce: Muitas páginas?
Woolf: Não as desejáveis para quatro séculos de história de vida.
Joyce: Curioso... O meu Ulisses é um vaidoso que se descreve em muitas páginas. Eu utilizei muitas páginas para descrever um só dia, você utilizou poucas para descrever quatro séculos.
Woolf: Sabe, às vezes penso que rematei a obra depressa demais, como um pintor que se esmera nos estudos preparatórios e depois cansa-se.
Joyce: Mas se Orlando tem consciência de si, que importa?
Woolf: O futuro não nos perdoará.
Joyce: Tudo se renova. O futuro guardará para si, caso a gente o mereça, o melhor das nossas obras. Outros virão que farão tudo de forma diferente. O futuro é uma semi-recta: tem princípio mas não tem fim.
Woolf: Tudo em mim me parece tão pouco...
Joyce: Não se subestime, todos somos pouco ou mesmo nada, mas por vezes superamo-nos. Ulisses superou-se no seu 16 de Junho.
Woolf: Curioso... Para Orlando o 16 de Junho de 1712 marca o momento em que passa do gosto de ser mulher para o desgosto.
Joyce: Sinto-a amargurada. Não quer dar uma volta?
Woolf: Não confio em si. Não confio no sexo masculino* assim como não confio no feminino.
Joyce: E não confia em si?!
...
Woolf: Vou caminhar...

Joyce voltou costas e Woolf caminhou em direcção ao rio Ouse de mãos nos bolsos a agarrar, como se fossem sapos vivos prontos a saltar, pedras.

* Virginia Woolf e a sua irmã Vanessa foram vítimas de abuso sexual por parte de dois meio-irmãos.