- o carteiro -
já há uns tempos (quer dizer, desde que comecei a escrever no/o Belogue) que me interesso por uma questão para a qual não sei se existe algo escrito. Lembro, a propósito disto e em tom introdutório, da leitura que fiz, aos 17 anos, do Inferno de Dante. Nela, o que mais me ficou na cabeça, foi a impossibilidade de qualquer condenado fugir ao inferno ou mesmo ver a sua pena atenuada. No Inferno não há fim, não há limite, não há alívio, não há retorno ao que antecedeu o Inferno (apocatástase). As paredes do Inferno têm quilómetros de espessura e as torturas são indescritíveis. São torturas que ultrapassam os próprios crimes de forma que a ideia de justiça não se aplica aqui. O Inferno é um crime; o Inferno é o crime. O Inferno nem sequer proporciona a cura pela doença (aplicação de uma pena igual ao crime de forma propedêutica e dissuasora de crimes futuros). Não, o Inferno é já independente do crime em si.
Não é o Inferno que me traz aqui, mas sim, a ideia de uma condenação, um castigo eterno que não é apanágio da cartilha cristã. Desde que começou a existir a ideia de um sobrenatural infalível, de algo superior que rege as nossas vidas, antes das religiões do livro, essa superação da dimensão do bem pela dimensão do mal, existia já. Quero com isto dizer que desde que o homem definiu, para justificar fenómenos que não explicava pela lógica, seres superiores a si em moral e autoridade, o castigo eterno está presente. É que quem acredita na força superior e maior que nós, tem a vida eterna. Não estou a falar da vida eterna do Cristianismo. Esta "vida eterna" refere-se a uma vida de aceitação e, portanto, de comunhão, de integração. Mas quem não acredita no sobrenatural, recebe - porque não é possível viver integrado e comunitariamente sem partilhar com a comunidade princípios básicos - um castigo: a condenação eterna. E essa condenação é superior à não partilha de uma crença generalizada.
Como disse, não é o Inferno que me traz aqui, já que o Inferno é somente uma imagem criada pela religião. O Inferno porém faz todo o sentido para um Deus que é omnipotente. É algo que está ao seu nível, ao nível da sua grandeza. No diâmetro oposto, mas ao nível de Deus. Mas e quando os nossos deuses são imperfeitos, têm uma aparência humana não só fisicamente, mas também de carácter? O que acontece quando os deuses são invejosos, ciumentos, vingativos, apaixonados, cruéis... Pode existir um Inferno? Pode. Mas esse Inferno não é um local (como dizia Dante), nem uma ideia (a culpa, o arrependimento...). Esse Inferno é o cansaço, a rotina, a repetição. Pior do que o castigo, é sempre o castigo. Já nem dói, já não custa, mas continua ad eternum. E a mitologia clássica usa e abusa do castigo eterno e nihilista. Apresento quatro casos, mas certamente haverá mais:
- Prometeu que roubou o fogo aos deuses: Zeus decidiu castiga-lo agrilhoando-o no Cáucaso. Todos os dias o seu fígado era devorado por uma águia e todos os dias, o fígado se regenerava, repetindo, no dia seguinte todo o processo.
- Sísifo que se vingou da mulher por esta ter assassinado os filhos de ambos: Como castigo, foi obrigado a carregar até ao topo de uma montanha, uma pedra de grandes dimensões. Porém, chegada ao topo da montanha, a pedra rolava pela outra encosta abaixo e tudo se repetia outra vez e outra vez e outra vez...
- Tântalo que foi castigado por servir carne do próprio filho aos deuses: Como castigo, foi colocado num tanque com água, sob uma árvore frondosa e frutífera. Mas sempre que tentava beber água, esta descia até desaparecer e quando tentava alcançar um fruto da árvore, o vento afastava os ramos.
Como vemos isto não acontece tudo no Hades, no Inferno da mitologia. Prometeu sofre o seu castigo em outro lugar e nenhum destes castigos ocorre após a morte dos seus protagonistas. Eles pagam, por isso "em vida". Talvez porque não existisse a ideia de vida para além da morte, o castigo tinha de ser em vida. E talvez pela severidade destes castigos que, ainda que ficcionais, eram exemplares; pela sua desproporção face à gravidade do crime, pela sua repetição sem nexo, o Cristianismo - que propunha uma vida para além da morte onde os castigos eram só mesmo para quem tinha praticado o mal - granjeou adeptos nas franjas do Império e floresceu. O seu Inferno era só para depois da morte. E da morte nunca ninguém regressou para contar como era.
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