- o carteiro -
quer se acredite ou não, temos de concordar: há santos muito estranhos, como santa maria egipcíaca, santa wilgefortis, São Guinefort... em Portugal também os há: mais estranhos e menos estranhos. um desses santos que protegem as vilas portuguesas e do qual se contam história jocosas é São Gonçalo de Amarante, protector, claro está, de Amarante. Toda gente sabe, e já aqui referi, as piadas, lenga-lengas e tradições em torno deste santo. Chamam-lhe casamenteiro das velhas, falam do seu "caralhinho" (desculpem) e por aí em diante. Mas há uma característica da representação de São Gonçalo de que infelizmente se fala pouco. São Gonçalo surge sempre - pelo menos que eu saiba, mas se não é sempre, devia ser - em cima de uma ponte, por vezes como que pairar sobre ela. Porquê? Não é que ele seja o protector das pontes, que não é, mas antes o protector das margens. Ora vamos lá ver se a gente se entende: imaginem um mundo parco em imagens e em informação, pobre em todos os aspectos e onde o perigo estava sempre à espreita e podia vir da mais insignificante das origens. As pontes eram de facto potenciadoras de perigo, pois ligavam o nosso lado, ao desconhecido.
Da mesma maneira que os poços eram os lugares de licenciosidade, onde as regras domésticas eram quebradas e onde homens e mulheres se encontravam (até existe aquela ideia de ir à fonte e quebrar a asa do cântaro que é no fundo uma analogia para iniciação sexual), também as pontes potenciavam o confronto com o desconhecido, confronto esse do qual algo de bom podia vir, mas que quase sempre era associado com o mal. Do outro lado da margem estava o rival, o outro. Para lá chegar era necessário entrar em outros domínios, pagar imposto, acautelar-se.
Nos tempos que correm, o outro está também na outra margem. Essa margem pode não ser a da ponte, pode não ser tão literal. O outro é aquele que nos quer impor as suas ideias pela força física, o outro é aquele que nos quer roubar o emprego, o outro é sempre caracterizado de forma - total ou parcial - negativa. Escrevo isto porque recordo os outros que na Segunda Guerra Mundial nos acolheram de forma a que sobrevivêssemos às várias formas de destruição. Esses outros eram sírios, egípcios e israelitas. São imagens retocadas quanto à cor (foram coloridas), mas permanecem fiéis à ideia de que os outros somos nós e que em História não há "ses". Convém por isso não esquecer a lição.
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